Em “Abundance”, Klein e Thompson procuram uma Quarta Via, in República dos Pijamas

A obra está próxima de uma autocrítica dentro do Partido Democrata, cada vez mais ameaçado pela a sua ala esquerda. Set 22, 2025.

Ezra Klein e Derek Thompson são duas figuras que esperamos encontrar mais nas discussões do ‘New York Times’ do que no debate português. Apesar de a sua obra, Abundance, ter passado ao lado das publicações em Portugal (até à data não foi traduzido), estão reunidas as condições para chegar ao debate nacional.

Um mau resultado das esquerdas nas eleições autárquicas, depois de uma derrota histórica nas legislativas, pode muito bem ser a entrada oficial de Abundance na política nacional. Muitas das ideias da obra já estão presentes no campo da Iniciativa Liberal ou até em setores ligados à energia, pela mão de João Galamba (ex-ministro das Infraestruturas e ex-secretário de Estado do Ambiente e da Energia). Mais cedo ou mais tarde, os argumentos de Abundance vão ditar os termos do debate em Portugal, muito provavelmente sob a forma de caricatura, quer seja pela “dinâmica de telefone estragado” quer através de tradutores informais, com o hábito de trazer argumentos dos meios anglo-saxónicos como se de uma descoberta sua se tratasse.

A semente já foi lançada. Em abril, a socialista Mariana Vieira da Silva citava de forma vaga e imprecisa o livro numa conversa para o podcast ‘Porque Falha o Estado’. Vieira da Silva não é apenas uma deputada – veterana do costismo, com pastas que a fizeram correr à máquina do Estado. Fora dos meios institucionais, as ideias centrais de Abundance estão a fazer o seu caminho no comentariado mais jovem (maioritariamente online), focadas no urbanismo e na mobilidade, tanto à esquerda como à direita.

Esta semana apresentamos um resumo da obra, do contexto em que surge e do percurso de um dos seus autores. Em breve, analisaremos mais detalhadamente as teses da obra no que toca à habitação – o tema incontornável para Portugal e onde as propostas de Abundance podem atolar o debate durante anos. Mais à frente, vamos usar as experiências de governos contemporâneos para encontrar a agenda de Abundance realmente existente.

A GUERRA CIVIL NOS DEMOCRATAS

A 16 de fevereiro de 2024, Ezra Klein era um dos primeiros a quebrar o consenso e a dizer que o rei ia nu. Num longo artigo com duras críticas à equipa à volta de Joe Biden, Klein argumentava que o então presidente dos EUA não deveria tentar a reeleição – tal conduziria Donald Trump a um segundo mandato.

Este jornalista e comentador do ‘New York Times’ não é uma figura qualquer. Klein era, e continua a ser, um dos maiores defensores da presidência de Biden. Para o colunista, o problema não estava no presidente Biden («estou convencido de que ele é capaz de desempenhar o cargo»), mas no candidato Biden («posso apontar momentos em que ele vacilou na campanha por causa da sua idade»). Mais do que uma denúncia, o artigo apontava um plano de ação. Era apresentada uma estratégia para a transição do poder: uma convenção aberta [open convention], não tanto para escolher um candidato, mas para mostrar ao país um Partido Democrata com talento, energia e unido.

Volvidos quase seis meses, Biden abandonou as suas ambições de reeleição a meio da campanha eleitoral e passou a tocha a Kamala Harris, sem a convenção sugerida por Klein. O segundo mandato de Trump seguiu-se à pesada derrota democrata.

Este episódio mostra como Klein opera nos círculos democratas. Um estratega nas margens que não pede licença, cujas opiniões e faro político são reconhecidos, mesmo que nem sempre aplicados. A sua ascensão pessoal confirma-o. De jovem blogger sem grandes credenciais a colunista do ‘New York Times’. Pelo caminho, em 2014, com 30 anos, cofundou o ‘Vox Media’ – um dos poucos meios digitais de sucesso fora da direita. A jornada de Klein mostra o que este exige e o quanto consegue ser levado a sério.

Há poucas coisas tão reveladoras como a admiração mútua, com tons de rivalidade, entre Ezra Klein (fundador do ‘Vox Media’) e Bhaskar Sunkara (fundador da revista ‘Jacobin ,que se define a si própria como “uma voz liderante na esquerda americana, que oferece visões socialistas sobre política, economia e cultura”’) (ligação 1 e ligação 2)

É exatamente por isso que o seu mais recente livro, Abundance: How We Build a Better Future [Abundância: Como Construímos um Futuro Melhor], é mais do que um sucesso de vendas (The Instant New York Times Bestseller). Inicialmente, a obra escrita com Derek Thompson estava planeada para sair no verão de 2024, antes da convenção do Partido Democrata. Serviria de moção estratégica “sombra” para Harris, incorporando lições do mandato Biden. Ao ser lançado apenas depois da eleição de Trump, o livro acaba por assumir outro papel, talvez de maior importância.

No contexto da segunda presidência de Trump, a obra deve ser interpretada como um novo palco de batalha ideológica dentro do ecossistema que rodeia o Partido Democrata. Opositora ao campo de Klein, a esquerda ancorada nas campanhas de Bernie Sanders entendeu Abundance como uma ameaça e passou imediatamente ao ataque (aquiaquiaqui e aqui). Desde a eleição de Trump, que esta esquerda tem aproveitado a desorientação do Partido Democrata para marcar o ritmo, como tem sido visível nos grandes comícios de Bernie Sanders e Alexandria Ocasio-Cortez (Fighting Oligarchy). Os seus instintos estavam certos: Abundance é um manifesto – sob a forma de livro de aeroporto – e o grande contrapeso ao movimento encabeçado por Sanders e Ocasio-Cortez. A obra de Klein e Thompson aparece como uma tábua de salvação para a ala centrista do Partido Democrata, incapaz de encontrar espaço entre a mensagem de Sanders e a reformulação da política norte-americana conduzida por Trump.

A força do abalo provocado por Abundance fez-se sentir quando o historiador económico Adam Tooze – dos poucos intelectuais capazes de dialogar eficazmente com estas duas alas do Partido Democrata – se sentiu na obrigação de dedicar (pela primeira vez) um episódio do seu podcast a um livro acabado de sair.

“Isto é Sunkara a comentar Klein-Thompson através de Mao, levando a reacção de Tim Barker, posteriormente comentado por Huber e agora por Eric Levitz… Não consigo acompanhar. Alguém pode fazer um mapa?” (ligação)

Mas do que trata Abundance? Em suma, o livro de Klein e Thompson identifica quatro áreas prioritárias a reformar pelos democratas, para os EUA conquistarem um futuro de abundância: habitação, transportes, energias renováveis e saúde. O fio condutor entre os temas é a eficácia do Estado (state capacity) e a inovação. Resumidamente, indo além dos desafios do financiamento dos projetos públicos, coloca a questão de saber se conseguimos ter um Estado capaz de intervir e construir o futuro.

IDEIAS VELHAS POR ESTRUTURAR

Se há coisa que não se deve esperar do livro de Klein e Thompson é originalidade. Na introdução, é pedido ao leitor para se imaginar em 2050, com um mundo alimentado por energias renováveis, entregas feitas em casa por drones voadores e a inteligência artificial a reduzir drasticamente o horário de trabalho. Os paralelos e contrastes com Possibilidades económicas para os nossos netos, de John Maynard Keynes (1930), e Comunismo de luxo totalmente automatizado, de Aaron Bastani (2018), são evidentes e reveladores. Keynes imaginava que, nos escombros da Grande Depressão, o desenvolvimento tecnológico iria permitir alcançar «a era do lazer e da abundância» com a jornada de trabalho de 15 horas no final do século XX. Este nível de otimismo tecnológico, na ressaca de múltiplas crises, está presente no livro de Klein e Thompson. Ao contrário de Aaron Bastani, que argumenta ser o desenvolvimento tecnológico uma forma de superar o sistema capitalista, Klein-Thompson (tal como Keynes) veem a inovação como forma de conservar o sistema através de melhorias generalizadas. O Estado promove uma revolução tecnológica sem desequilibrar as estruturas de poder vigente.

A falta de originalidade não se fica pela introdução. Como os próprios autores clarificam, grande parte dos argumentos e exemplos de Abundance jáforam explorados por KIein e Thompson em artigos passados, ou pelos seus companheiros de jornada no ‘movimento Abundance (Matthew Yglesias, Jerusalem Demsas, Annie Lowrey, Noah Smith, entre outros). Em conjunto com o acaso, a falta de originalidade ditou a formação da dupla de autores. Com base em artigos já publicados, Klein entendeu que provavelmente estava a escrever o mesmo livro que Thompson (que tinha cunhado o termo “The Abundance Agenda”, em 2022) e propôs unirem esforços.

Ainda assim, o livro vai além de ser um agregador de artigos ou de traduções não-oficiais do trabalho de outros membros do ‘movimento Abundance’. O que Klein-Thompson conseguem, onde outros falharam, é na construção de um diagnóstico político convincente que fundamenta as suas propostas, partindo de Obama para acabar no DOGE [Departamento de Eficiência Governamental] da segunda presidência Trump.

Quando Yglesias (cofundador do ‘Vox Media’ com Klein) publicou One Billion Americans [Mil Milhões de Americanos],em 2020, um livro com uma agenda política semelhante, a sua tese oscilava entre o imperialismo e o absurdo. Yglesias defendia políticas como mais construção de casas e expansão dos transportes públicos, pois os EUA precisavam de «triplicar a sua população para competir com as potências asiáticas emergentes» e «tornar a América maior do que nunca». Mais tarde, o próprio Yglesias admitiu que o seu livro falhou no timing,pois ainda não existia «um sentimento muito amplo de alarme sobre a China como ator regional e global». Abundance não ignora a competição da China, mas em vez de isso ser o centro do argumento, é um fantasma que paira sobre o livro. Em parte, porque os autores sabem que partilham da questão chinesa com o bloco trumpista e admitem a sua própria falta de conhecimento sobre o gigante asiático (trabalho deixado a cargo de Dan Wang).

O livro fala abertamente para o Partido Democrata e tenta convencê-lo de que tem uma receita para ganhar no futuro. Na sua tese sobre a ascensão de Trump e a impopularidade dos democratas, Klein e Thompson não se centram na desindustrialização do Rust Belt, nas elites urbanas arrogantes, nem na disseminação de notícias falsas através de plataformas digitais. Para os autores, a responsabilidade cabe aos democratas, que falham a governar os seus principais bastiões, onde vivem as tais elites urbanas (Califórnia e Nova Iorque): o custo de vida, em especial a habitação, é cada vez mais elevado; o número de pessoas em situação de sem abrigo tem vindo a crescer; é endémica a incapacidade de expandir redes de transportes públicos; e, ponto crucial, a população desses estados tem vindo a cair. Como prova do falhanço, é-nos apresentado o facto de que são estes os estados onde Trump teve os maiores ganhos na eleição de 2024. Mantendo-se as tendências de crescimento demográfico (que se refletem em mudanças no colégio eleitoral, a favor dos republicanos), os democratas tornam-se cada vez menos elegíveis. Abundance é simultaneamente um exercício de autocrítica e um grito pela sobrevivência.

Mesmo sem desvalorizar o ciclo de inflação dos anos Biden, Klein-Thompson apresentam-no como a última gota de uma longa crise no custo de vida. O ponto de partida é um artigo publicado em fevereiro de 2020, por Annie Lowrey (esposa de Klein), intitulado de The Great Affordability Crisis Breaking America [“A Grande Crise de Custo de Vida que Está a Destruir a América”]. Ainda antes da pandemia e subsequente choque inflacionário, Lowrey argumentava que o cabaz de despesas essenciais (habitação, saúde, faculdade e creches) tem passado por um longo período de encarecimento, camuflado nas estatísticas pela deflação de produtos não essenciais, como bens duráveis maioritariamente importados da Ásia (televisores, computadores, roupa). Ou seja, mais do que a subida de preços dos últimos anos, os autores apontam a ilusão da baixa taxa de inflação (média) das décadas anteriores.

O gráfico mostra que a tese de Klein e Thompson tem uma base estatística convincente, apesar de não ser incluído ou citado no livro.

Os elevados preços de bens e serviços essenciais são reflexo daquilo a que os autores chamam de uma ‘economia de escassez’ – termo usado para descrever as economias socialistas, emprestado (sem dar crédito) ao economista János Kornai. A escassez é um fardo para os democratas e uma benção para os republicanos. Para o partido de Trump, a escassez facilita o discurso de disputa de recursos dentro da sociedade, em especial entre nativos e migrantes. Na campanha eleitoral, o então candidato a vice-presidente J. D. Vance aproveitou a lógica da escassez para culpar a imigração pelos aumentos de preços da habitação.

Para explicar a sua tese, são traçadas as diferenças na maneira de lidar com as crises entre os mandatos de Obama e de Biden. Obama estava principalmente preocupado em estimular uma economia deprimida, resultado da Grande Crise Financeira, em ativar a capacidade instalada por utilizar. Por isso, aumentar a procura seria suficiente. No caso de Biden, no pós-pandemia, a combinação de disrupções nas cadeias de valor com o clima de pleno emprego não materializou os estímulos económicos. Sem a expansão da capacidade produtiva existente (aumento da oferta), o plano de Biden acabou por criar pressões inflacionistas. Não é por acaso que Klein descreveu a estratégia económica de Biden como uma tentativa de política progressista pelo lado da oferta (supply side progressivism) – um intervencionismo do governo focado em criar capacidade produtiva para combater os estrangulamentos nas cadeias de valor.

Os autores argumentam que o ambiente de escassez limitou a execução dos planos da administração Biden. Aprovar os investimentos bilionários no Congresso (CHIPS e IRA) não garantiu a sua execução no terreno. Esta é uma distinção útil, geralmente subestimada por economistas, políticos e analistas. Enquanto se festeja a passagem de leis e financiamentos para projetos nos órgãos de decisão, um projeto tem de ser concretizado no terreno. Entre outras coisas, esta execução depende de leis, de regulamentações e do aparelho burocrático existente (State Capacity). Segundo os autores, o montante aprovado no Congresso é muitas vezes apenas uma vitória ilusória, ficando no ar as questões sobre se tais investimentos serão realmente concretizados e convertidos em objetivos políticos concretos (p. ex.: construir uma linha de comboio num período de tempo definido). Um fenómeno que Noah Smith, economista de pendor liberal, apelidou de Checkism (Chequismo): uma forma de fazer política excessivamente focada no tamanho do envelope financeiro, que perde o interesse pelo projeto assim que a despesa é aprovada pelos órgãos de decisão e em que, em caso de falhanço, uma avaliação do que correu mal fica por fazer.

De forma mais indireta do que direta, Abundance está em constante diálogo com as ideias progressistas que ganharam força no pós-crise financeira. O decrescimento (degrowth), capitaneado por Jason Hickel, é o principal inimigo intelectual; o trabalho de Mariana Mazzucato sobre o Estado empreendedor e os perigos de um Estado dependente das empresas de consultoria, mesmo pouco citado, é um fio condutor de vários dos argumentos; a ‘Modern Monetary Theory‘ (MMT), que tem Stephanie Kelton como articuladora pública, é a lente para interpretar o recente fenómeno de inflação. O ausente mais notado é Thomas Pikkety e todo o pensamento focado nas desigualdades. Uma ausência que abre o flanco à crítica legítima de que Abundance é um manifesto omisso quanto ao combate sobre os equilíbrios de poder, evitando torná-los num campo de disputa – ideia geralmente resumida no slogan “é preciso crescer primeiro para depois redistribuir”.

AS ORIGENS DA ECONOMIA DA ESCASSEZ

A tese central do livro está assente na evolução da geografia económica dos EUA. Ou seja, no cruzamento dos setores económicos em que os EUA se especializaram com as áreas metropolitanas onde estes ocorrem. No século XXI, as indústrias transformadoras deram espaço à “economia do conhecimento”, centrada em serviços financeiros, tecnológicos, digitais e biotecnológicos. Contrariamente ao modelo de economia industrial, dispersa por vários polos no país, este novo modelo concentra-se num reduzido número de metrópoles (Nova Iorque, Silicon Valley, Boston, Seattle e pouco mais).

Utilizando as teorias da economia urbana mais ortodoxas – ancoradas nos livros de aeroporto de Ed Glaeser e Enrico Moretti – é-nos apresentada a ideia de que a hiperconcentração geográfica acontece porque a “economia do conhecimento” valoriza e promove a concentração geográfica (‘economias de aglomeração’). Através da interdependência, surge um ciclo virtuoso de concentração. As empresas estão dispostas a suportar os custos de operar nas cidades mais caras do mundo (imobiliário e salários) para terem acesso simultâneo a trabalhadores especializados, a infraestruturas e a redes de conhecimento e de distribuição maduras.

Para Klein e Thompson, este modelo definhou, em grande medida, devido ao encarecimento da habitação nas principais cidades dos EUA, que restringe o acesso a oportunidades. Abundance apela a um passado em que a ida para as grandes cidades era uma decisão financeiramente benéfica para a maioria dos trabalhadores, tanto para um advogado como para um porteiro. Hoje, devido aos custos com habitação, essa decisão é apenas benéfica para o advogado, o que dificulta o funcionamento económico e social dos EUA.

Um segundo ponto, embora não explícito no livro, é que o encarecimento das cidades ultrapassou um limiar que coloca em causa a emergência de novos setores e a capacidade de competir com outros países, nomeadamente com a China. Numa entrevista sobre o livro, Klein afirmou que achava «notável» Nova Iorque não ter uma empresa importante na área da tecnologia (exceto a agência de informação financeira Bloomberg, fundada em 1981) e muito menos na Inteligência Artificial. Sendo difícil tirar lições diretas dos EUA para Portugal, o diagnóstico de Abundance tem alguns paralelos com aquilo que tem acontecido nas áreas metropolitanas de Portugal.

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Embora a forma como os autores olham para a economia tenha os seus méritos, esta deixa ao descoberto o ‘calcanhar de Aquiles’ do resto do livro. A forma como se diagnostica um problema vai inevitavelmente influenciar as conclusões. Logo à partida, as próprias posições políticas Glaeser e Moretti – os ideólogos económicos de Klein e Thompson – levantam sérias dúvidas da sua utilidade para uma refundação do Partido Democrata. No caso de Ed Glaser, este é um autointitulado “republicano da Costa Leste”, membro do think tank conservador Manhattan Institute, e um economista que vê a desregulação como resposta para quase todos os problemas urbanos. Moretti simpatiza com a ideia de cortes de impostos para promover o crescimento. No que toca ao pensamento de Glaser e Moretti e, consequentemente, da dupla Klein-Thompson, fica evidente a ausência de uma reflexão sobre o papel da urbanização dos EUA no poder negocial dos trabalhadores (que, com mais opções, ficam menos vulneráveis a um único empregador). Uma dinâmica que tem sido vastamente investigada (aqui e aqui) e que seria expectável num livro que quer influenciar o Partido Democrata.

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É neste tipo de omissões que encontramos os reais pontos de tensão entre a esquerda e o movimento representado por Abundance. Numa conversa entre os dois autores, Klein considerou o surgimento do movimento por mais construção nas cidades (YMBYYes In My Backyard), como a facção ideológica «mais entusiasmante» do progressismo em muitos anos. É notável a ausência, mesmo nas notas de rodapé, quer dos novos movimentos sindicais (nos serviços, como o Starbucks, e na distribuição, como a Amazon) quer das vitórias em setores tradicionais (automóvel, apoiado abertamente por Biden).

ACABAR COM AS FORÇAS DE BLOQUEIO

Apesar de Klein e Thompson separarem a sua obra em áreas temáticas, há uma certa monotonia nas causas e nas soluções. Da habitação à mobilidade, passando pela instalação de energias renováveis, os diagnósticos e as receitas são teimosamente idênticos. De forma sucinta, Abundance alega que os EUA vivem uma escassez de infraestruturas devido a existência de bloqueios legais e burocráticos à sua construção. A principal diferença são as origens desses bloqueios em cada uma das áreas. Na habitação, o principal constrangimento são os proprietários que bloqueiam novas construções, gerando uma escassez artificial que valoriza as suas propriedades.

Cada vez menos casas por habitante nos EUA.

Na ferrovia e na instalação de energia renovável, o principal vilão é um alegado excesso de regulamentações e de processos ambientais. Segundo Klein e Thompson, o ciclo de desenvolvimento iniciado na década de 1930, com o New Deal, modernizou o país, mas deixou um pesado lastro ambiental. Na década de 1960, em resposta a estragos como os rios poluídos por empresas, ao ponto de se incendiarem, e às cidades com ar irrespirável, os movimentos em torno da proteção ambiental e dos consumidores ganharam força. É neste contexto que emerge Ralph Nader, um advogado e ativista na proteção ambiental e na defesa dos direitos do consumidor. Nader é a figura mais próxima de um vilão, mesmo que acidental, em Abundance.

Os autores tentam o exercício delicado de não colocar em causa os avanços conseguidos através das ações de Nader e de outros, enquanto procuram rever o seu legado. O grande problema – ou mesmo o pecado original do progressismo contemporâneo – é a forma como alterou o modo de fazer política, com consequências até aos dias de hoje. Nader é usado como exemplo de uma cultura de ativismo ancorada em ONG e centrada em bloquear e processar o Estado, em vez de o mudar e reformar. Para os autores, o legado de Nader é um “Frankenstein” burocrático, que compromete os seus próprios objetivos, como a proteção ambiental. No fundo, argumentam que a transição das políticas do New Deal para o neoliberalismo não foi um caminho linear de desregulações em toda a linha. Foram garantidas mais regulações, num processo de conversão de trabalhadores em consumidores.

A tentativa fracassada da construção de um comboio de alta velocidade na Califórnia, entre San Francisco e Los Angeles, é-nos apresentada como a prova cabal deste problema. Uma ideia que surgiu em 1982 (com o governador Jerry Brown) e que vence em 2008 um referendo para investir 10 mil milhões de dólares na sua construção, projetada para estar pronta em 2020. Os estudos de impacto ambiental levaram mais de uma década (2012-2024). No meio dessa saga, a SNCF – o campeão ferroviário francês – abandonou o projeto, para se focar na construção da alta velocidade em Marrocos. Entretanto, o projeto original foi cortado para uma ligação entre pequenas cidades no meio da Califórnia (Merced-Barkersfield), prevista estar pronta, na melhor das hipóteses, em 2030.

Para provar que o problema da construção de infraestruturas nos EUA não é técnico, ou de engenharia, mas sim político, Abundance usa como contraexemplo a Interstate 95 (Filadélfia). Depois do colapso da estrutura rodoviária em 2023, o governador Josh Shapiro usou poderes de emergência para contornar os trâmites legais e a reconstrução foi concluída em menos de duas semanas.

Mesmo trazendo pontos interessantes, as omissões no capítulo dos transportes são um dos seus pontos fracos. Num país dominado pela infraestrutura automóvel, com uma forte indústria petrolífera, os autores não distinguem entre os desafios das infraestruturas rodoviárias e os da ferrovia. Além disso, existe uma clara estratégia de omitir qualquer tipo de sabotagem de grandes projetos pela classe dominante. Elon Musk admitiu ao próprio biógrafo que fez os possíveis para bloquear o projeto do comboio de alta velocidade na Califórnia. Este episódio sugere que parte da burguesia instalada pode sair beneficiada pelos processos burocráticos e regulatórios que paralisam o Estado, dificultando a concorrência de novos projetos. Contudo, Abundance – livro avesso a falar de questões de poder dentro da sociedade – vende a ideia de que as forças de bloqueio são protagonizadas pela classe média bem-pensante e pelas ONG que tendem a apoiar o Partido Democrata.

Na instalação de energias renováveis, tal como na habitação, a dupla Klein-Thompson usa o Texas como exemplo de uma política de abundância. O bastião republicano tem uma regulação do uso dos solos muito mais liberal, capaz de instalar energia renovável em larga escala. Contudo, Abundance ignora por completo todos os outros desafios em torno da instalação de energias renováveis, em especial os relativos ao financiamento e aos modelos de rentabilidade. No aclamado livro The Price is Wrong, o geógrafo Brett Christophers argumenta que os mercados de energia foram estruturados de uma forma em que é difícil garantir lucros estáveis para projetos renováveis, minando o investimento nestas tecnologias. Sem ignorar as questões burocráticas, Christophers não lhes dá peso e mostra que a transição energética mundial é praticamente toda feita pela China e que isso se deve às particularidades da estrutura de mercado energético. Klein e Thompson são omissos sobre este tipo de fatores e tentam convencer o leitor de que estamos apenas perante constrangimentos burocráticos. A obra tem um claro viés a favor da energia nuclear, que fica por justificar, e que nada acrescenta ao seu argumento central.

Por fim, os capítulos em torno da saúde e da inovação tecnológica seguem um argumento semelhante, mas também menos convincente do que a maioria do livro. Na linha de um bom livro de aeroporto, são-nos apresentadas uma série de histórias interessantes, mas sem uma tese central que convença que os autores tenham uma solução para os EUA nestas áreas. Até porque, o grande caso de sucesso citado, é a Operation Warp Speed, o programa excecional para invenção da vacina de COVID-19, nos próprios EUA. No meio de observações úteis sobre a elevada dependência de consultoria externa e a burocratização dos departamentos de investigação, fica a sensação de que estes capítulos foram incluídos mais pela importância dos temas, do que pelo pensamento dos autores sobre os verdadeiros constrangimentos nestas áreas.

Regressando ao início do livro, que projeta um futuro de abundância generalizada, o otimismo tecnológico dos autores deve ser visto com cautela. Quase 100 anos depois, as previsões de Keynes realizaram-se de forma parcial. A produtividade cresceu em linha com o projetado pelo economista, através do desenvolvimento tecnológico, mas a jornada de trabalho nunca chegou a algo próximo das 15 horas semanais e os salários não acompanharam esses ganhos. A dupla Klein-Thompson imagina um futuro risonho do ponto de vista tecnológico, mas não apresenta garantias de que este se torne na utopia por realizar de Keynes.

ELEVAR O DEBATE

Nas primárias do Partido Democrata em 2016, entre Bernie Sanders e Hillary Clinton, Clinton afirmou que «dividir os grandes bancos não acabará com o racismo e o sexismo». Num debate televisivo, para desvalorizar as propostas de inspiração social-democrata de Sanders, Clinton argumentava que «nós não somos a Dinamarca. Somos os Estados Unidos da América (…) e estaríamos a cometer um erro enorme em virar as costas àquilo que construiu a maior classe média da história do mundo».

Estes casos ilustram a dinâmica da campanha de Clinton. Por um lado, excessivamente centrada no simbolismo de eleger a primeira mulher presidente dos EUA, como se notava no slogan “I’m with her” [“Estou com ela”], e nos ataques ao alegado machismo dos apoiantes de Sanders nas redes sociais (os “Bernie Bros”). Enquanto o racismo e o sexismo eram temas necessários na campanha democrata, o seu uso por parte da ala centrista baixou o nível do debate. Por outro lado, a ausência de uma agenda programática ambiciosa era camuflada num discurso do excepcionalismo norte-americano, onde comparações com outro país eram obsoletas.

Os autores de Abundance entendem que campanhas centradas numa moderação abstrata, refugiadas em batalhas morais, não são suficientes para os democratas moderados vencerem a ala de Sanders, o trumpismo, e regressarem à Casa Branca. As referências da dupla Klein-Thompson a temas como racismo e sexismo são raras, indiretas e geralmente para denunciarem algum bloqueio burocrático associado a objetivos sociais. Não se propondo resolver esses problemas, a agenda de Abundance é compatível com quem o queira fazer através de outros ângulos. Fundamentalmente, não os usa para evitar discutir os objetivos e o funcionamento do Estado.

No que toca a considerar o que se faz noutros países, os autores da obra usam outros países (China) e os estados republicanos (o Texas) para argumentar que a agenda de abundância é possível e fundamental para manter os EUA no topo da corrida global pela inovação tecnológica.

O diagnóstico e a agenda de Abundance não é saudosista nem tenta ensaiar um passado perdido. O exercício de Klein e Thompson tem claros paralelos com a ‘terceira via’ dos anos 1990, em que figuras como Tony Blair e Bill Clinton desenhavam uma agenda para uma economia cada vez mais concentrada nos serviços das grandes metrópoles. Enquanto os meios para atingir a abundância partilham alguns paralelos com a ‘terceira via’ – em especial as medidas de caráter desregulatório – os seus fins são mais próximos do Estado “fazedor” de infraestruturas do New Deal. Contrariamente a Clinton-Blair, o duo Klein-Thompson não põe grande ênfase em agendas como a educação (capital humano) e na substituição do Estado por ONG em várias funções essenciais.

Mesmo com um diagnóstico monótono e com uma agenda quase unidirecional de desregulação, o manifesto apresentado em Abundance é uma clara melhoria do debate programático interno no espaço progressista. Os autores partilham muitas das mesmas causas da ala esquerda do Partido Democrata: casas mais baratas, mais transportes públicos, energia limpa, melhorias nos níveis de saúde e um Estado inovador que não seja refém de consultoras. Contrariamente ao vazio de Clinton, em 2016, Abundance acabou por suscitar debates úteis e oportunos dentro da ala esquerda do Partido Democrata (p. ex. aqui).

De forma sucinta, dentro deste campo existem duas posições: aqueles que desvalorizam o livro, definindo-o como o rebranding de uma agenda neoliberal ineficaz do Partido Democrata, alinhada com os interesses das corporações; e outros que consideram que Abundance coloca o centro do Partido Democrata a debater temas úteis, e que a agenda deve ser disputada e apropriada pela esquerda.

Figuras como Zhoran Mamdani (candidato a Mayor de Nova Iorque) e Bhaskar Sunkara (fundador da revista ‘Jacobin’, que discutia com Klein estas questões já em 2022) encontram-se no segundo campo do debate. Waleed Shahid – estratega que trabalhou com Ocasio-Cortez e Sanders – vai mais longe e argumenta que os momentos de maiores avanços sociais nos EUA, como o New Deal, beneficiaram daquilo que seria um híbrido entre a força do movimento de Sanders e o sentido pragmático focado na eficiênciaque apelidou de “Populism Abundance” [“Populismo da Abundância].

OS MÉRITOS DE ABUNDANCE

Apesar do simplismo típico dos livros de aeroporto, Abundance é uma leitura oportuna para o movimento progressista dentro e fora dos EUA, pelo menos por quatro motivos. Primeiro, a dupla Klein-Thompson tenta disputar o tema da eficiência do Estado. A temática tem sido monopolizada pela direita, com esta a apontar a ineficiência do setor público de forma destrutiva, com o objetivo de o descredibilizar, como ficou evidente com o DOGE inicialmente conduzido por Elon Musk. Abundance tenta fazer uma crítica pela positiva, combatendo a caricatura de que o Partido Democrata (e outros na mesma linha) é a favor de mais Estado de forma acrítica e um defensor ferrenho do status quo burocrático.

Em segundo lugar, recentra o debate do investimento público em objetivos políticos concretos e menos nos montantes gastos. Esta ideia pode parecer uma nova variante da austeridade, mas na prática o baixo custo de execução de projetos reflete um sistema que funciona de forma saudável. Por exemplo, olhando para o investimento monetário em ferrovia, o Reino Unido aparenta ser um campeão ferroviário, com altos níveis de investimento face a Espanha e França. Contudo, a realidade mostra o contrário. O nosso vizinho ibérico e a França, através da eficácia, são capazes de construir linhas de comboio a baixo custo, o que significa uma expansão persistente das respetivas redes ferroviárias. Os milhares de milhões gastos no Reino Unido deixam um lastro negativo que sucessivamente compromete a credibilidade do Estado no que toca a investimentos estruturantes.

Em terceiro lugar, sem o dizer diretamente, os autores de Abundance mostram a importância de ter um conhecimento detalhado do funcionamento da máquina do Estado. Este é geralmente um ponto fraco de candidaturas de esquerda radical, em especial em países altamente centralizados como Portugal, e fulcral para criar janelas de oportunidade. No caso português, durante anos, a agenda pela habitação pediu mais investimento para expandir o parque público para níveis em linha com o centro da Europa. Com os fundos do PRR disponíveis, surge a perplexidade com a incapacidade de utilizar o “dinheiro grátis” numa das maiores crises da história do Portugal democrático. O problema de execução do financiamento repete-se em setores como os transportes públicos.

Um facto geralmente ignorado no surgimento de Mamdani é como este tem usado a seu favor o conhecimento adquirido desde 2020 na Assembleia Estadual de Nova Iorque para criar um programa político progressista detalhado, que não se cinge a investir mais dinheiro sem confrontar os problemas dentro do Estado. Mamdani não chegou a esta posição por ter lido o livro de aeroporto de Klein e Thompson. A estratégia política do candidato a Mayor de Nova Iorque foi evoluindo com a sua experiência governativa e em alguns pontos acabou por convergir com os autores de Abundance. Ainda assim, a apropriação da expressão «abundância» nos seus discursos de campanha é um claro sinal de que o slogan de Klein e Thompson tem valor comunicacional.

Por último, mesmo que os autores sejam avessos a falar de estruturas de poder, de oligopólios tecnológicos e de bilionários que controlam os meios de comunicação, a sua tese obriga o campo progressista a pensar para além do 1% mais rico. Estão Klein e Thompson corretos ao apontar o dedo a grupos materialmente confortáveis, como as associações de médicos, que exercem o seu poder para controlar a oferta na sua profissão? Pode o mesmo ser dito sobre famílias com mais do que um imóvel que beneficiam dos aumentos da habitação? Ou daqueles que usam todas as ferramentas ao seu dispor para se apropriarem do espaço coletivo para o uso do veículo individual em detrimento dos transportes públicos? A dupla de Abundance, mesmo sem ter essa intenção, ajuda a desbravar um caminho para além dos 99%.

Dada a dificuldade de Portugal desenvolver redes de transportes e habitação pública, mesmo com fundos do PRR, os problemas apresentados por Klein e Thompson soam demasiado familiares. No entanto, o pior contributo possível de Abundance para o debate nacional é o mais provável: o da importação de ideias e projetos de forma acrítica e descontextualizada; a convicção de que a ineficácia de certas partes do Estado tem as mesmas origens em todos os países e de que, por isso, Portugal simplesmente necessita de um choque desregulatório.

No próximo texto, iremos contestar este ponto no que toca ao mercado da habitação, em que vamos ver que, ao invés de reduzir a regulação, reformar os impostos sobre a propriedade pode ser o caminho para a abundância nesta grande crise na sociedade portuguesa.

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