A Crise das Dívidas Soberanas, a teimosia de agir do BCE, Sócrates e Passos Coelho…os quatro desgraçaram Portugal, por Eduardo Maltez Silva, in Facebook.

“Sócrates desgraçou o país e Passos Coelho veio salvar”

Mas quando olhamos para os factos — e não para os slogans — vemos que a verdade é bem mais complexa: a Crise das Dívidas Soberanas, a teimosia de agir do BCE, Sócrates e Passos Coelho…os quatro desgraçaram Portugal.

Tudo começou com a crise do subprime, nos Estados Unidos, em 2008.

Durante anos, bancos e fundos financeiros emprestaram dinheiro a quem não podia pagar, empacotando esses créditos em produtos financeiros vendidos por todo o mundo. Era a magia da desregulação bancária que os neo liberais nos tinham habituado. (e que agora pelos vistos voltaram)

Quando a bolha rebentou, os bancos colapsaram, o crédito secou e as economias interligadas entraram em choque. Ate as pensões de alguns americanos foram à falência (pensem nisso quando votarem na IL).

Foi uma crise global, não portuguesa.

Países como Portugal — com pouca indústria, grande endividamento externo e forte dependência do crédito — foram os mais atingidos.

Portanto, não:

Sócrates não inventou a crise.

Teve a sua responsabilidade,

mas não foi o único responsável.

A crise veio de fora, e atingiu quase todos os países europeus.

A diferença é que alguns tinham economias mais fortes e bancos nacionais mais sólidos (como a Alemanha e a França) — e outros, governos que souberam proteger melhor o seu povo, aplicando políticas anticíclicas, de investimento e proteção social, em vez de cortes cegos.

Sócrates não era governante na Espanha, Irlanda, Grécia, EUA, Itália, Hungria ou Islândia…que também sofreram o impacto dessa crise global.

II. Porque é que a dívida disparou entre 2010 e 2011??

Muitos olham para esse salto e dizem: “O Estado gastou demais”, “vivíamos acima das nossas possibilidades” ou “foi o peso das gorduras do Estado”.

Mas isso é falso.

A dívida subiu por 3 razões técnicas e financeiras, não por despesismo.

1. Os empréstimos da Troika contam logo como dívida.

Quando Portugal pediu ajuda em 2011, recebeu cerca de 78 mil milhões de euros.

Mesmo o dinheiro que ficou guardado como reserva entrou imediatamente nas contas como dívida bruta.

Só este registo fez a dívida pública saltar de ~100% do PIB em 2010 para ~114% em 2011 — sem que o Estado tivesse aumentado a despesa corrente.

2. Os juros e o risco dispararam.

A instabilidade nos mercados levou os investidores a exigir juros superiores a 7% para emprestar a Portugal.

Só entre 2010 e 2011, os encargos com juros subiram quase 3 mil milhões de euros, empurrando a dívida para cima mesmo com o congelamento de salários e investimento.

É como um crédito da casa cujo juro dispara: a dívida cresce sem aumentar as despesas.

3. Foram incluídas dívidas que antes não contavam.

Empresas públicas e regionais — transportes, PPP, Madeira — passaram a ser integradas nas contas oficiais do Estado.

Essas reclassificações acrescentaram mais de 10 pontos percentuais ao rácio da dívida, segundo o FMI e a Comissão Europeia, sem novas despesas efetivas.

Resumindo:

👉 a dívida cresceu porque o país estava a ser engolido pela crise global e pelas condições de financiamento, não porque o governo tivesse “gasto demais” e as pessoas “vivessem acima das suas possibilidades”.

A ideia do “Estado gordo” foi uma narrativa política para cortar no povo e assim alimentar os mais ricos — não um diagnóstico económico.

III. O que fez Passos Coelho — e porque piorou tudo

Quando Passos chegou ao poder, em 2011, prometeu “salvar Portugal”.

Segundo Catroga (o negociador do PSD com a troika), o plano da troika era essencialmente o programa de governo de Passos Coelho.

O programa nao foi imposto ao PSD, pelo contrário, foi abraçado e ampliado.

Na prática, Passo foi além da Troika — cortando mais do que o memorando exigia:

– Cortou salários e pensões até 14%;

– Aumentou o IVA para 23% na restauração e expandiu a sua aplicação a bens essenciais;

– Reduziu o investimento público em quase 40%;

– Despediu funcionários públicos e reduziu prestações sociais.

– Privatizou mais do que o necessário.

O resultado foi devastador:

– O PIB caiu -4,1% em 2012 e -1,1% em 2013, acumulando a pior recessão desde 1975;

– O desemprego disparou de 12% (2011) para 17,5% em 2013 — e entre os jovens, ultrapassou 38%;

– O investimento total caiu de 24% do PIB em 2008 para 15% em 2013, o valor mais baixo da UE;

– Fecharam mais de 100 mil pequenas e médias empresas;

– O défice orçamental nunca desapareceu (em 2015 ainda era 4,4%);

E (PASME-SE) a dívida pública atingiu o recorde histórico de 132,9% do PIB em 2014 — ou seja, SUBIU ainda mais durante o “ajustamento”.

Enquanto isso, países como Irlanda e Espanha, que sofreram crises semelhantes, já cresciam em 2013, apoiados por políticas de estímulo, não de corte.

A “cura pela austeridade” de Passos Coelho foi, na verdade, o veneno que atrasou a recuperação.

O FMI, o BCE e o Banco de Portugal reconheceram mais tarde que as previsões de impacto dos cortes estavam erradas e que a austeridade teve efeitos muito mais recessivos do que o previsto.

IV. O que realmente ajudou Portugal a sair do buraco

Não foram os cortes de Passos Coelho…esses só pioraram a dívida e a crise.

O que salvou a economia foi exatamente o que a esquerda e os economistas keynesianos vinham a defender desde o início: estimular a economia, não asfixiá-la.

O que realmente mudou o rumo foi:

1. A intervenção do Banco Central Europeu.

Em 2015, o BCE lançou o quantitative easing (PSPP), comprando dívida pública e baixando as yields portuguesas de 7% para menos de 2%.

2. As políticas de relançamento económico.

Após 2015, com o governo da Geringonça, os salários foram descongelados, o salário mínimo subiu, o investimento público retomou e o défice caiu abaixo de 3% pela primeira vez desde 2000, sem austeridade.

A economia cresceu 2,7% em 2017, o desemprego desceu para 6%, e a dívida começou finalmente a cair em percentagem do PIB.

Conclusão.

Passos Coelho não foi o homem que salvou Portugal…ninguem salva um país deixando-o pior em tudo, incluindo na dívida que nos vinha salvar.

Foi o homem que aproveitou a crise para impor o programa ideológico que nunca conseguiria em democracia plena.

Uma espécie de Milei da motoserra.

Enquanto dizia “não há alternativa”, destruiu emprego, salários, serviços públicos e esperanças — para entregar ao capital privado tudo o que pôde.

Fez-se de vítima da troika, mas foi cúmplice e entusiasta: diziam “que o programa da troika era igual ao do PSD. ”, e foi “além da troika” como se a austeridade fosse virtude.

No fim, deixou o país mais pobre, mais desigual, mais endividado e mais frágil do que o encontrou. Ainda hoje pagamos.

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