Uma Outra Voz, de Gabriela Ruivo Trindade

Um romance a várias vozes, cada uma narrando uma história pessoal, todas encadeadas a partir da mudança de protagonista, ou de uma morte ou de outra perda qualquer. Cada nova voz surge quando a outra se cala para sempre. A vida que deixamos por viver carrega uma dor que se transmite. As vozes dão-lhe expressão, corpo e alimentam a narrativa deste romance numa estrutura invulgar tecida com inegável sensibilidade.

A história de uma família ao longo de um século; podia resumir-se este romance desta forma, porque tudo o mais não fará justiça a esta obra ou à escrita de Gabriela Ruivo Trindade. Um livro que convida a demorar-nos numa frase, a reler toda uma extensa passagem, descobri-la como um refrão cantado numa voz que não nos cansamos de escutar. Encontramos aqui a magia das histórias de encantar, da oralidade vertida numa escrita cuidada e trabalhada com enlevo e o relato lúcido de toda a solidão com que conseguimos preencher a nossa vida.

…entregar-me nos braços da morte como quem enrola um velho cobertor de que já conhece o cheiro.

leia a recensão completa no Acrítico – leituras dispersas.

Citando Gabriela Ruivo Trindade

Uma Outra Voz

Um completo estranho, o meu corpo. Às vezes parece-me que tenta falar comigo, mas não entendo patavina do que diz. Chego a acreditar que me roubaram o antigo corpo ou o deitei fora. Talvez o tenha despido, como quem arranca o pijama de manhã, e me tenha enfiado noutro. Usado, ainda por cima. Gasto, velho e com defeito.

O ventre é o meu pólo sul. Para lá não existe nada. Ou talvez devesse dizer: o ventre é uma espécie de fim do mundo. Uma falha geológica gigantesca que separasse uma península do continente e a lançasse, errante, no coração do oceano. Eu sou o que sobra desse continente desmembrado; o resto partiu, levado na corrente marítima, não sei para onde.

O resto. As pernas, os pés e o baixo-ventre; tudo o que fica abaixo do umbigo. Aliás, se não visse todos os dias as minhas pernas, pensaria que mas tinham amputado. Se não visse o tubo da algália, a sua extremidade a desembocar naquele saco em que se vai acumulando o líquido amarelo que (dizem) é a minha urina; se a enfermeira não viesse todos os dias baixar-me as calças em movimentos lentos e pacientes, abrir-me a fralda, retirar cuidadosamente o tubo de borracha em volta do pénis, depois virar-me de lado com a ajuda de dois auxiliares e lavar-me o rabo como se fosse um bebé, juraria que não tenho sexo, nem cu; que nem sequer cago, pois nem sinto a merda agarrada às nádegas, aos pêlos; eu deitado em cima da minha própria merda, um bebé de vinte e quatro anos. Queria ao menos vomitar o nojo. Mas nem isso. Arrancaram-me as tripas, os pulmões, o coração. Talvez só me reste o cérebro.

Uma Outra Voz, Gabriela Ruivo Trindade, prémio Leya 2013.

Uma Outra Voz – Prémio Leya 2013

Uma Outra Voz

João José Mariano Serrão foi um republicano convicto que contribuiu decisivamente para a elevação de Estremoz a cidade e o seu posterior desenvolvimento. Solteiro, generoso e empreendedor como poucos, abriu lojas, cafés e uma oficina, trouxe a electricidade às ruas sombrias e criou um rancho de sobrinhos a quem deu um lar e um futuro. É em torno deste homem determinado, mas também secreto e contido, que giram as cinco vozes que nos guiam ao longo deste livro., numa viagem que é a um tempo pessoal e colectiva, porque não raro as estórias dos narradores se cruzam com momentos-chave da Baseado em factos reais, Uma Outra Voz é uma ficção que nos oferece uma multiplicidade de olhares sobre a mesma paisagem, urdindo a história de uma família ao longo de um século através das revelações de cada um dos seus membros, numa interessante teia de complementaridade.

Livro Vencedor do Prémio Leya 2013

Uma Outra Voz, de Gabriela Ruivo Trindade – Prémio LeYa 2013

Foto Gabriela Ruivo Trindade

Reuniu ontem e hoje o júri do Prémio Leya, a que concorreram este ano quatrocentos e noventa e um originais, oriundos da Alemanha, Angola, Brasil, Espanha, Estados Unidos da América, França, Guiné-Bissau, Itália, Luxemburgo, Macau, Moçambique, Portugal, Reino Unido e Suécia.

O júri deliberou atribuir o Prémio ao romance «Uma Outra Voz», de Gabriela Ruivo Trindade.

O júri destaca a consistência do projecto narrativo que procura, através de várias gerações, e com o foco em personagens de grande força, sobretudo femininas, retratar a transformação da sociedade e dos modelos de vida numa cidade de província, no Alentejo. Merece destaque a originalidade com que o autor combina o individual e o colectivo, bem como a inclusão da perspectiva do(s) narrador(es) no desenho cuidado de um universo de vastas implicações mas circunscrito à esfera do mundo familiar ao longo de um século de História. Também a exploração ficcional de registo diarístico e a inclusão da fotografia dão um sinal de modernidade formal a esta obra premiada por maioria do júri.

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