NOTAS SOLTAS DE UM DOMINGO DE OUTUBRO Fernando Couto e Santos | Facebook 01/10/2023

1-A Livraria Leya na Buchholz – que reabriu após obras de remodelação – promoveu esta semana uma série de conferências e outras iniciativas para assinalar os oitenta anos da famosa Livraria lisboeta. Sejamos claros: apesar dos esforços louváveis do grupo Leya que reergueu em 2010 a Livraria das cinzas da antiga Buchholz que havia encerrado em 2009, a vida nem sempre é um eterno recomeço e com o encerramento da velha Buchholz perdeu-se toda uma filosofia de livraria que durante décadas foi um símbolo de um certo cosmopolitismo literário que Lisboa em boa verdade não tinha ou tinha tão – só à guisa de ilhas muito dispersas – quiçá pequenas aldeias gaulesas -aqui ou acolá.

Karl Buchholz fugiu da Alemanha e escolheu Portugal para abrir a “Livraria Buchholz” na Avenida da Liberdade. Ali se encontravam os melhores livros estrangeiros, uma novidade para os portugueses. Foi curta a sua passagem pelo nosso país e nos anos cinquenta partiu para a Colômbia, onde abriu outra livraria. A de Lisboa continuou sem o seu fundador e a dado momento mudou de instalações para a Rua Duque de Palmela, perto da primeira morada.

Fui cliente assíduo da Buchholz desde muito cedo e, se a memória me não atraiçoa, nela comprei livros em todas as línguas que domino e ainda em alemão, língua que aprendi na infância e que se me foi infelizmente evaporando por ausência de prática. 

Algumas das funcionárias – uma senhora alemã, em particular – não primavam propriamente pela simpatia, mas a competência era inquestionável e podemos afirmar sem qualquer hesitação que durante décadas foi sem dúvida a melhor livraria de Lisboa. O seu definhamento deixou nostálgicos os amantes da boa literatura e em particular os poliglotas. 

Um amigo que muito prezo dizia-me há tempos que a necessidade da frequência de livrarias diminuíra porque agora há a concorrência da Net – sobretudo da Amazon – que vende livros a preços mais competitivos. Ninguém questiona a utilidade das livrarias digitais, mas essa afirmação inspira-me duas notas. Primeiro, sabemos como algumas livrarias digitais, particularmente a Amazon, conseguem a rapidez na entrega e porque podem cobrar os preços que cobram. Não raro é à custa do sacrifício dos direitos dos trabalhadores. Segundo, não vamos a uma livraria só para comprarmos aquilo que já conhecemos, vamos a uma livraria para sermos surpreendidos por uma novidade e para descobrirmos aquilo de que nem sequer sabíamos que gostávamos. 

Voltando à Buchholz, possa o grupo Leya ter o engenho e a arte para transformar finalmente esta livraria renovada numa referência do mundo livreiro lisboeta.

2- A situação política em Espanha continua num impasse. As negociações arrastam-se sem que uma solução avance. Alberto Núñez Feijóo, do Partido Popular de centro-direita, foi indigitado pelo Rei Felipe VI para formar governo na sua qualidade de líder do partido mais votado nas últimas eleições, mas não conseguiu a maioria dos votos necessários nas Cortes para que a sua proposta vingasse. Conseguiu apenas 172 dos 176 votos indispensáveis para conseguir uma maioria absoluta. 

Pedro Sánchez, actual primeiro-ministro (ou presidente do Governo, como se diz em Espanha) e líder do segundo partido mais votado, espera ser agora indigitado para formar governo. As dificuldades serão imensas, sobretudo porque Pedro Sánchez só conseguirá, em princípio, uma maioria de votos se negociar uma solução de governo com os independentistas bascos e catalães, pois os votos do seu partido, o PSOE (Partido Socialista Obrero Español), juntamente com os da plataforma Sumar (mais ou menos equivalente ao Bloco de Esquerda em Portugal) e os de outras pequenas formações, não são suficientes para constituir uma maioria de 176 votos. 

Ora, se à direita o perigo vinha de um possível governo apoiado pelo Vox, partido herdeiro dos nostálgicos do franquismo, do militarismo trauliteiro e da sacristia bafienta, enfim da Espanha retrógrada de que falava o grande poeta Antonio Machado – «esta España de charanga y pandereta» -, à esquerda, o risco virá da chantagem dos nacionalistas. Para já, a moeda de troca – a que o catalão Carles Puigdemont e outras vozes já aludiram – é a amnistia para os líderes catalães condenados pela organização ilegal com fundos públicos do referendo para a independência, assim como as bases para um novo referendo, desta feita, é claro, com a anuência do poder político de Madrid. Há sinais de que Sanchéz parece disposto a ceder às exigências dos catalães, o que já suscitou a indignação de históricos do PSOE como o antigo líder e presidente do governo de 1982 a 1996 Felipe González, Alfonso Guerra ou Joaquín Almunia, para além de Nicolás Redondo que se aproximara ultimamente do PP e que foi, há dias, expulso do partido. 

Sánchez parece estar a brincar com o fogo, pois o PSOE sempre fez parte até agora do consenso nacional em torno da oposição ao independentismo e foi inclusive, em tempos, decisivo no esvaziamento da ETA. Ou Sánchez tem algum trunfo na manga e consegue esvaziar o nacionalismo catalão – a amnistia, para já, é de constitucionalidade duvidosa, bem como um eventual referendo – ou arrisca-se, caso venha mesmo a formar governo, a criar uma tensão no país que gerará uma instabilidade imprevisível. Em nome do poder, não vale tudo e Sánchez está justamente a ser acusado de querer manter-se no poder a qualquer preço. Vamos aguardar os próximos desenvolvimentos numa Espanha em que os ânimos se podem exaltar com relativa facilidade. 

3-Há poucos dias, um amigo e colega de profissão que sempre que é Director de Turma assume o compromisso de tudo fazer para manter, na medida do possível, um bom relacionamento com os Encarregados de Educação, contava-me que nos últimos anos, na escola onde lecciona, só uma vez – belíssima média, sem dúvida! – teve, metaforicamente falando, um osso duro de roer com um Encarregado de Educação que insistia em dizer que o comportamento disruptivo – como agora pomposamente se diz – do seu educando se devia às «más companhias», ignorando ou querendo ignorar que a «má companhia» acabava por ser o seu próprio educando. Este comportamento é típico da nossa vida quotidiana, bem como da política, do desporto, ou de qualquer outra área. Alguns dirão que faz parte da natureza humana. Talvez, mas se fizéssemos um pequeno esforço para vermos o outro lado da história, se nos puséssemos mais amiúde no lugar do outro, provavelmente teríamos a clarividência de melhor compreender os comportamentos humanos e de ver que o erro não está sempre do outro lado. Infelizmente, vivemos no nosso próprio mundo, excessivamente dependentes, por exemplo, dos telemóveis. A liberdade individual, que deve ser assegurada e preservada, não nos deve fazer esquecer que vivemos em sociedade e que o outro é tão importante quanto nós.

Fernando Couto e Santos

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