A CAMARADA GRETA GARBO, por Manuel S. Fonseca, in Jornal de Negócios e Facebook

Gosto de quem muda de opinião. E muito mais se quem muda de opinião é a sueca Greta Garbo. Ainda mais quando muda de um sorumbática tristeza para um riso esfuziante.

A CAMARADA GRETA GARBO

De que matéria é que se fazem os sonhos? De letras, diria eu. Ora vamos e vejamos, os sonhos dos filmes, antes de serem sonhos, antes de serem aventuras, antes de serem gargalhadas, são palavras escritas. Há, para cada filme, um argumentista, a senhora ou senhor que escreve os textos, que hão de guiar o realizador e ser frases na boca aos actores. Há tempos, os argumentistas mais reputados em actividade elegeram o melhor de sempre na profissão.

Vejam, elegeram Billy Wilder, um austríaco que pronunciava cada palavra inglesa com os pés, mas que tinha ideias e sacava diálogos de uma afrontosa originalidade, para não dizer virgindade. Escreveu coisas geniais e Ninotchka,filme realizado por Ernst Lubitsch, foi uma das obras-primas que saiu da sua máquina de escrever.

Deram-lhe um mote: “Jovem russa impregnada de ideais bolchevistas vai para a assustadora, capitalista e monopolista cidade de Paris. Apaixona-se e passa uns dias de gozo do caneco. Talvez o capitalismo não seja assim tão mau.” Deste briefing, Wilder inventou Ninotchka.

Pois bem, conhecemos a revolucionária Ninotchka na sombria Moscovo e, claro, estamos todos à espera de ver a cena da chegada, a uma gare de Paris, dessa Ninotchka, a que Greta Garbo emprestou rosto, corpo e a rouca voz.

Na gare estão à espera dela três camaradas soviéticos, já inclinados, pela vida que espreitam em Paris, à condescendência social-democrata para a qual, durante os anos da nossa geringonça, até mesmos os inflamados militantes bloquistas se deixaram deslizar, direitinhos ao bolso de António Costa.

Digo isto e não é um despropósito, há qualquer coisa de mortaguiano no primeiro contacto da camarada Garbo com um representante da espécie chauvinista, arrogante, machista, que é o aromático burguês de infeliz produção capitalista. Ela quer estudar a espécie, como um entomologista a sua minhoca.

Como se fosse a inescapável sessão de uma comissão parlamentar, Mortágua, perdão, a camarada Greta Garbo disseca o bicho capitalista e expõe, com uma imbatível lógica escolástica, as misérias que o lacinho de seda, o chapéu de feltro, o delicado fatinho, procuram ocultar. É delicioso ver a comunistíssima Greta Garbo desfazer a miséria do capitalismo.

Parêntesis: verifiquei, com surpresa, tão justa e científica é a previsão do fim do chauvinismo capitalista, que o filme foi, ao tempo, proibido na solaríssima União Soviética, onde julgo que nada era proibido.

 Palpita-me que a culpa foi das palavras que Wilder pôs na boca de Ninotchka, depois dela experimentar uns apaixonados french kisses, arrancados aos lábios e língua do execrável burguês, beijos acompanhados por umas flûtes desse borbulhante champanhe, que faz a glória da França e é a única etílica libação que a minha mulher, a revolucionária Antónia, consente. 

E diz Ninochka, de olhos postos no amado burguês e na taça de champanhe: “Estou tão feliz. Oh, que feliz que estou. Ninguém pode estar tão feliz sem ser castigado. Vou ser castigada. Tenho de ser castigada.”

Wilder castiga-a! Se virem o filme, descobrem como: o sólido argumentista austríaco fá-la rir, e rir é o pecado que a velha revolução bolchevista nunca perdoou. Tenho de acrescentar que, hoje, o activismo militante, vetusto, furioso, albardado em culpas, ainda perdoa menos. A conversão de Ninotchka ao riso e ao prazer é o caminho das pedras da sua perdição em Paris e por Paris. As palavras de Wilder fazem com que a camarada Greta Garbo ponha cada pé na pedra certa, ou não fossem as palavras a matéria de que se fazem os sonhos.

(Publicado no Weekend, Jornal de Negócios)

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