A MÃE DE WILLIAM CARLOS WILLIAMS, por Fernando Couto e Santos, in Facebook 19-05-24

O sucesso de alguns livros faz não raro eclipsar o conhecimento de livros mais antigos que os inspiraram. Assim, muitos talvez desconheçam que o famoso romance 1984 de George Orwell foi inspirado por Nós do escritor russo Evgueni Zamiatine. Ou, se recuarmos mais no tempo, verificamos que o mesmo sucedeu com Os Cadernos de Malte Laurids Brigge de Rainer Maria Rilke que muito devem à admiração do autor pelo romance Niels Lyhne do dinamarquês Jens Peter Jacobsen. Em Portugal, também se estabeleceu em certos círculos a ideia de que O Crime do Padre Amaro de Eça de Queiroz seria tributário do romance La faute de l´Abbé Mouret de Émile Zola, sendo que o nosso Eça refutou essa alegação, afirmando que o seu livro até era anterior ao livro de Zola. Parece que, a bem da verdade, serão do mesmo ano (1875). Porém, infelizmente para nós e malgrado a indiscutível qualidade literária do nosso grande escritor, Eça de Queiroz nunca foi tão conhecido extra-muros como o conceituado escritor francês.  

A crónica de hoje não tem propriamente a ver com livros que inspiraram outros livros, mas, como muitos consideram os livros como uma espécie de filhos, servi-me deste expediente para trazer à colação a história de uma mãe que muito prometeu, mas que acabou eclipsada pela celebridade do filho. Trata-se da pintora Raquel Hélène Hoheb que atingiu alguma projecção na segunda metade do século XIX e que veio a ser a mãe do grande poeta americano William Carlos Williams, que também foi médico pediatra e um dos nomes cimeiros do modernismo, do imagismo e do objectivismo – que ele próprio fundou – na poesia dos Estados Unidos.

A ideia surgiu-me de uma leitura recente do romance La muerte feliz de William Carlos Williams, da escritora porto-riquenha Marta Aponte Alsina, publicado em 2022 pela editorial espanhola Candaya. Apesar do título, mais ainda do que sobre o poeta americano, o romance incide também muito sobre a figura de sua mãe, a pintora porto – riquenha Raquel Hoheb.

Sobre a mãe de William Carlos Williams, as referências que hoje encontramos ao investigarmos o seu nome na Net não são muitas. Há inclusive informações díspares quanto à data do seu nascimento. Algumas dizem que nasceu em 1847 – tese que a autora do livro parece validar numa entrevista – e portanto teria vivido mais de um século, pois viria a falecer apenas em 1950. Porém, outras fontes apontam a data de 1856, o que significa que teria vivido 92 anos. O seu filho sobreviver-lhe-ia treze anos, uma vez que, nascido em 1863, daria o último suspiro em 1963, aos 79 anos. 

Raquel Hoheb viu a luz do dia em Porto Rico, na cidade de Mayagüez, um porto de primeira classe onde ancorava na época o único vapor da ilha, que cheirava, como se lê no livro de Marta Aponte Alsina, a alcatrão e a borrasca. Em 1860, a cidade – pertencente a um território que era então ainda uma colónia espanhola – tinha 12.168 habitantes e agentes consulares de Estados Unidos, Inglaterra e França. Em 1878, tinha um gasómetro que alimentava duzentos e cinquenta e quatro faróis e quatrocentas e vinte luzes em casas particulares, uma estação telegráfica, um mercado de ferro com rodapés de alvenaria, cinco advogados e nove médicos, uma biblioteca popular, trinta e sete ruas e quatro ruelas. 

De origem francesa e sedenta de saber e de cosmopolitismo, Raquel Hoheb, antes de se casar, estudou pintura em Paris com Jean-Jacques Henner e foi discípula de Carolus – Duran, reconhecido pintor académico de linha neo – clássica, afastado das correntes que na época revolucionavam a arte da pintura. As obras que hoje subsistem de Raquel Hélène Hoheb são de uma elegância e de factura néo -clássica e difíceis de encontrar, sendo, em grande parte, propriedade de familiares. 

Após a sua passagem por Paris, Raquel Hoheb, renunciando a uma promissora carreira de, digamos assim, pintora profissional, casou-se nos Estados Unidos com William George Williams, um inglês que crescera na República Dominicana. A família – em que se praticava o espiritismo – estabeleceu-se em Rutherford, na Nova Inglaterra, onde Raquel já tinha família. Curiosamente, em casa dos Williams, falava-se espanhol e recebiam-se visitas do Caribe, o que significa que William Carlos Williams, grande poeta de língua inglesa, também foi habituado desde criança a ouvir outros sons e a ser fluente na língua de Cervantes. O francês, língua dos antepassados de sua mãe, também não foi estranho ao poeta. Mais tarde, William Carlos Williams, durante uma parte do seu percurso liceal, estudaria numa escola de Genebra e no liceu Condorcet, em Paris. A relação com a sua mãe era de admiração e até de idolatria, mas também de algum receio face a uma certa austeridade de Raquel Hobeb, a quem tratavam por alteza real, ou seja, em inglês, Royal Highness, seguindo as iniciais do seu nome. 

Aquando da saída em Espanha da obra supracitada, a autora Marta Aponte Alsina foi interrogada em várias entrevistas sobre a razão do enigmático título da obra, La muerte feliz de William Carlos Williams. A autora respondeu: «O mistério do título tem a ver com o momento em que Raquel Hoheb faleceu. O seu filho William Carlos Williams, ao ver a sua placidez expressiva, escreveu a um amigo e disse que a sua mãe parecia uma princesa egípcia». 

É voz corrente dizer-se que por detrás de um grande homem, está sempre uma grande mulher. Talvez se possa dizer igualmente que por detrás de um grande filho, está sempre uma grande mãe. 

Facebook, 19/05/2024 | Mural de Fernando Couto e Santos

Deixe um comentário

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.