O riso das mães | Miguel Esteves Cardoso in jornal “Público”, 7 de Maio de 2017

A minha mãe está sempre a voltar. Aparece-me mais vezes do que quando estava viva. Sinto-a a rir-se dentro de mim, a desafiar-me a lembrar-me dela: “Diz lá então o que é que diz esta mãe tão chata que não te deixa em paz?”

Antes de morrer ela confidenciou-me “as mães, por muito boas que sejam, acabam sempre por deixar mal os filhos”. Em inglês: they always let you down. Senti-me imediatamente culpado: não estaria ela a falar nos filhos? Não somos nós que as desiludimos, num instantinho?

As mães não nos deixam ficar mal: não nos deixam. Por muito bem que estejamos elas voltam. Até voltam mais quando estamos bem e esquecemos as saudades que temos delas. Voltam para nos fazer rir, voltam para nos mostrar como, voltam para ver as coisas com os olhos delas.

Há um grande amor que se solta quando a presença física desaparece. Há um grande amor que espera por esse vazio para se mostrar. É como a voz dela dentro de mim: só comecei a ouvi-la no silêncio que caiu à minha volta quando ela se foi embora. Durante uns tempos — que nunca mais acabavam — doía-me que eu não pudesse falar com ela. Mas doía-me ainda mais ela não poder falar comigo.

Sim, não posso telefonar-lhe. Mas já não preciso. Ela fala comigo várias vezes por dia. Eu conto à Maria João, tal e qual tivesse acabado de falar com ela. Ela ajuda-me a rir, a perceber, a entregar-me.

As mães só fingem que nos deixam ficar mal. A verdade — que também é triste — é que não nos largam. Porque nós não as deixamos. Nem podemos.

Miguel Esteves Cardoso

https://www.publico.pt/2017/05/07/sociedade/noticia/o-riso-das-maes-1771242

A glória da amizade é ser apenas presente Miguel Esteves Cardoso, in ‘Explicações de Português’

“A decadência da amizade entre nós deve-se à instrumentalização que tem vindo a sofrer. Transformou-se numa espécie de maçonaria, uma central de cunhas, palavrinhas, cumplicidades e compadrios. É por isso que as amizades se fazem e desfazem como se fossem laços políticos ou comerciais. Se alguém «falta» ou «não corresponde», se não cumpre as obrigações contratuais, é logo condenado como «mau» amigo e sumariamente proscrito. Está tudo doido. Só uma miséria destas obriga a dizer o óbvio: os amigos são as pessoas de que nós gostamos e com quem estamos de vez em quando. Podemos nem sequer darmo-nos muito, ou bem, com elas. Ou gostar mais delas do que elas de nós. Não interessa. A amizade é um gosto egoísta, ou inevitabilidade, o caminho de um coração em roda-livre.

Os amigos têm de ser inúteis. Isto é, bastarem só por existir e, maravilhosamente, sobrarem-nos na alma só por quem e como são. O porquê, o onde e o quando não interessam. A amizade não tem ponto de partida, nem percurso, nem objectivo. É impossível lembrarmo-nos de como é que nos tornámos amigos de alguém ou pensarmos no futuro que vamos ter.

A glória da amizade é ser apenas presente. É por isso que dura para sempre; porque não contém expectativas nem planos nem ansiedade”.

FESTA DO AVANTE! | Miguel Esteves Cardoso

“Dizem-se muitas mentiras acerca da Festa do Avante! Estas são as mais populares: que é irrelevante; que é um anacronismo; que é decadente; que é um grande negócio disfarçado de festa; que já perdeu o conteúdo político; que hoje é só comes e bebes.

Já é a Segunda vez que lá vou e posso garantir que não é nada dessas coisas e que não só é escusado como perigoso fingir que é. Porque a verdade verdadinha é que a Festa do Avante faz um bocadinho de medo.

O que se segue não é tanto uma crónica sobre essa festa como a reportagem de um preconceito acerca dela – um preconceito gigantesco que envolve a grande maioria dos portugueses. Ou pelo menos a mim.

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O trauma da morada | Miguel Esteves Cardoso | in O Ponney

Um dos grandes problemas da nossa sociedade é o trauma da morada. Por exemplo, há uns anos, um grande amigo meu, que morava em Sete Rios, comprou um andar em Carnaxide.

Fica pertíssimo de Lisboa, é agradável, tem árvores e cafés. Só tinha

um problema. Era em Carnaxide. Nunca mais ninguém o viu.

Para quem vive em Lisboa, tinha emigrado para a Mauritânia!

Acontece o mesmo com todos os sítios acabados em -ide, como Carnide e Moscavide. Rimam com Tide e com Pide e as pessoas não lhes ligam pevide.

Um palácio com sessenta quartos em Carnide é sempre mais traumático do que umas águas-furtadas em Cascais. É a injustiça do endereço.

Está-se numa festa e as pessoas perguntam, por boa educação ou por curiosidade, onde é que vivemos. O tamanho e a arquitectura da casa não interessam. Mas morre imediatamente quem disser que mora em Massamá, Brandoa, Cumeada, Agualva-Cacém, Abuxarda, Alfornelos, Murtosa, Angeja… ou em qualquer outro sítio que soe à toponímia de Angola.

Para não falar na Cova da Piedade, na Coina, no Fogueteiro e na Cruz de Pau. (…)

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ENTREVISTA EXCLUSIVA A MIGUEL ESTEVES CARDOSO: “SEM O PRAZER, É TUDO UMA ESTUCHA” | por JOÃO PEDRO GEORGE | in VISÃO

Entrevista exclusiva a Miguel Esteves Cardoso: “Sem o prazer, é tudo uma estucha”

Aos 67 anos, é um dos mais brilhantes retratistas de Portugal, país que ama, mas no qual identifica uma paralisante resignação e uma falta de sentido de humor. Numa rara e longa conversa, conduzida pelo escritor João Pedro George, falou de tudo – da infância, dos prazeres da vida, da escrita, de política

Há muitas pessoas que têm o costume de fazer listas com as coisas que gostariam de fazer antes de morrer: passear num balão, participar num safari, saltar de para-quedas, montar um elefante, ficar representado num busto, ver a Aurora Boreal, flutuar no Mar Morto, declamar Herberto Helder numa reunião de empresários, ir ao supermercado de pijama. A mim, o que mais gozo me daria, antes de morrer, era uma coisa muito mais insensata: conversar com o Miguel Esteves Cardoso. Consegui-lo tornou a minha vida realmente magnífica. Por isso, estou-lhe grato. Grato no duplo sentido de agradecido e agradado.

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Gosto de palavrões | de Miguel Esteves Cardoso | in Ncultura

“Se não usarmos os palavrões, livre e inocentemente, eles tornar-se-ão em meras obscenidades. E para obscenidade já basta a vida em si.”

Gosto muito de palavrões, como gosto de palavrinhas e de palavras em geral. Acho-os indispensáveis a quem tenha necessidade de escrever ou falar.

Mas como sou moralista tenho uma teoria, que é a seguinte: quando se usam palavrões, sem ser com o sentido concreto que têm, é como se estivéssemos a desinfectá-los, a torná-los decentes, a recuperá-los para o convívio familiar e quando um palavrão é usado literalmente é repugnante.

Dizer que “a sanita está entupida de merda.” ou “tenho uma verruga na ponta do caralho” é inadmissível. No entanto, dizer que um filme “é uma merda” ou que “comprar uma casa em Massamá não lembra ao caralho”, não mete nojo a ninguém.

Cada vez que um palavrão é utilizado fora do seu contexto concreto e significado, é como se fosse reabilitado. Dar nova vida aos palavrões, libertando-os dos constrangimentos estritamente sexuais ou orgânicos que os sufocam, é simplesmente um exercício de libertação.

Quando uma esferográfica pode ser “puta” – não escreve – desagrava-se a mulher que se prostitui.
Quando um exame de Direito Administrativo é fodido, há alguém, algures, deitado numa cama, que escusa de se foder.

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Miguel Esteves Cardoso e o SNS

“Se não fosse o NHS – o sistema de saúde do Reino Unido, onde nasceram, muito prematuramente, as minhas filhas – elas não teriam sobrevivido. Elas devem a vida ao NHS. E eu devo-lhe o amor e a alegria de conhecer a Sara e a Tristana, para não falar no meu neto, António, igualmente devedor, mais as netas e netos que aí vêm.

Se não fosse o SNS (Serviço Nacional de Saúde) eu teria morrido em 2005, com uma hepatite alcoólica causada unicamente por culpa minha. Seria também coxo, quando me deram uma prótese para anca. E, sobretudo, teria morrido, se o SNS não me tivesse dado o antibiótico caríssimo (Linozelid) que me salvou do MRSA assassino que me infectou durante a operação.

Se não fosse o SNS, a Maria João, o meu amor, estaria morta. Se não fossem o IPO e o Hospital de Santa Maria, pagos pelo SNS, ela não estaria viva, por duas vezes.

Sem a NHS e o SNS, eu seria um morto, sem mulher, filhas ou netos. Estaríamos todos mortos ou condenados à inexistência.

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O Amor é fodido | Miguel Esteves Cardoso | Prefácio de Ricardo Araújo Pereira

“O sobressalto começa no título. Mesmo o leitor menos experiente suspeita que, embora escritores de todos os tempos e lugares se tenham dedicado a tentar definir o amor, talvez seja improvável que alguém alguma vez tenha optado por terminar uma frase começada pela expressão «o amor é» com a palavra «fodido». O amor costuma ter, apesar de tudo, boa imprensa – o que, pensando bem, é incompreensível. Dizer que o amor é fodido é, finalmente, tratá-lo como ele merece. É resumir, para quem não quer perder tempo com eufemismos eruditos, a etimologia da palavra paixão.” Ricardo Araújo Pereira