António Damásio (s/ Espinosa) | Entrevista conduzida por Anabela Mota Ribeiro | in Diário de Notícias em 2003

«Em «O Erro de Descartes» abordei o papel da emoção e do sentimento na tomada de decisões. Em «O Sentimento de Si» descrevi o papel da emoção e do sentimento na construção do si (self). O foco deste novo livro são os sentimentos propriamente ditos, aquilo que são e aquilo que fazem».

O novo livro de que fala António Damásio no parágrafo reproduzido é «Ao encontro de Espinosa». Em cinquenta rigorosos minutos, falei com o neuro-cientista sobre o universo do livro, mais rigorosamente explicitado no subtítulo: as emoções sociais e a neurologia do sentir. Infelizmente não pude falar sobre aquilo de que começámos a falar enquanto decorria a sessão de fotografias. De cinema. Do facto de ter querido ser realizador quando era adolescente. Do jantar com Woody Allen, curioso do trabalho que Damásio desenvolve com a mulher, Hanna. De fotografia e da sua colecção primorosa. De design e dos seus objectos elegantes, serenos, depurados. Da insistência nas visitas a Shakespeare e a Orson Welles. Do professor de liceu que marcou a sua vida. Da partida para os Estados Unidos. Do trabalho que desenvolve. Dos dias que leva. Da sua comoção. De como se escreve a comoção num ecrã de computador. Da relação com a mulher, sólida, cuja presença remete para as estátuas gregas. Do que o faz ser como é.

A urgência do tempo fez que nos centrássemos no livro, sob o arco tutelar de Espinosa.

António Damásio é director do Departamento de Neurologia da Universidade de Iowa e professor do Salk Institute for Biological Studies na Califórnia. Tem recebido numerosas distinções científicas. Os seus livros vendem-se no mundo inteiro.

Como é sabido, é um homem ilustre. Felizmente acordámos que esta entrevista seria apenas o preâmbulo da entrevista que um dia me há-de conceder.

Baudelaire escreve n’ «O Pintor da Vida Moderna» que «O génio é a infância reencontrada». Que comentário lhe suscita esta passagem?

Há muito na infância que contribui para o melhor do trabalho que alguma vez podemos fazer como adultos, especialmente uma visão simples, depurada e inocente daquilo que é a realidade. O génio nessa citação refere-se à grande qualidade de trabalho, à grande qualidade de resultado. Para obtê-la, é necessário um conjunto de circunstâncias que incluem características da infância: inocência, uma enorme curiosidade e uma simplicidade.

Eu pensei ainda num outro aspecto da infância, que remete para essa inocência, e que é uma espécie de sabedoria intuitiva, disseminada no corpo e atirada para fora por uma imensa curiosidade. Daí que me tenha lembrado disto para trazer até si.

Faz sentido. A intuição tem muitos níveis e muitas formas. Há uma intuição extremamente simples que uma criança pode ter, que uma pessoa inteligente e não necessariamente muito educada pode ter. E há também uma intuição sofisticada que vem já como resultado de uma enorme quantidade de conhecimentos e reflexão. Para uma pessoa como Espinosa, a intuição é o terceiro tipo de conhecimento. É de facto único no pensamento filosófico e psicológico em geral, porque é comum colocar a intuição como uma forma mais baixa de raciocínio e de pensamento, o que é errado sob muitos pontos de vista. Espinosa reconhece que a intuição é a forma mais alta e mais complexa de conhecimento, a forma mais refinada de chegar a um conhecimento verdadeiro. Mas claro que é uma intuição que não é a da criança que aparece no seu Baudelaire.

Onde se firma essa distância?

É uma intuição a que não se pode chegar antes de se ser adulto: vem depois de ter sido lavrada por conhecimentos, reflexão, maturidade. O que não quer dizer que não haja também para Espinosa uma intuição mais simples que vem antes. É uma espécie de sanduiche de intuições: a da criança e a outra que vem mais tarde.

A originalidade de Espinosa, ao elevar a intuição a forma superior do conhecimento, é extraordinária. Sobretudo porque se considera habitualmente que a inocência vai sendo perdida à medida que se consome informação. Como se a criança perdesse a pureza e a capacidade original para apreender, e aprendesse inclusive a confiar menos nos seus sentidos e intuição.

É um ponto extremamente importante. Há coisas muito curiosas em relação a isso. No tipo de maturação cognitiva mais corrente hoje em dia há a perda dessa confiança no corpo, naquilo de que o corpo pode informar a mente.

Podemos chamar-lhe linguagem do corpo?

Podemos chamar-lhe assim. É um conjunto de informações que o corpo está a dar. As informações que vêm pelos sentidos, geralmente pelos tele-sentidos, e as informações que vêm através dos mecanismos de informação de massas, são tão rápidas que é muitas vezes difícil reflectir sobre elas de uma forma correcta, e acaba-se por ter uma visão menos real daquilo que é uma pessoa. Aliás, toda a sua pergunta prende-se com uma coisa muito importante para mim, que é a perda da noção natural da relação entre o corpo e a mente.

Assente neste dualismo que é muito a marca do pensamento ocidental, não é?

Exacto. E esse dualismo marca-se muito quando se perde a noção de que estamos a viver no corpo. Agora, o que não sei é se a criança tem de modo tão acentuado essa noção. Pode ser que tenha, mas é difícil. É possível pensar que tem muito mais. O Peter Brook, que é um grande realizador teatral e de cinema, tem pensado muito a forma como um actor funciona. Conhece o filme que ele fez, Lord of the Flies? É um filme famoso que envolve o comportamento de crianças que ficam sozinhas numa ilha, como resultado de um desastre de avião, e que traça a evolução dessa sociedade infantil, colocada num isolamento sem adultos. Isto foi há 30 ou 40 anos e ele teve que trabalhar com muitas crianças. Disse-me que crianças até cerca dos 5 ou 6 anos de idade têm uma facilidade enorme em representar, e representar de uma forma muito natural; mas que por volta dos 10 anos ou mais, essa grande inocência que permite uma assunção natural de certas posições do corpo, perde-se.

Que explicação aponta?

Já há um controlo muito mais marcado de uma cognição de tipo adulto que cria esse divórcio. Grande parte dos dualismos de que falamos têm a ver com essa tendência para vermos as coisas de uma forma muito distanciada do corpo. Há pessoas adultas que me perguntam sobre a nova fisiologia do corpo e sobre a emoção e me dizem coisas extraordinárias: «Como é que pode pensar na importância do corpo? Eu não tenho ideia nenhuma do meu corpo, eu nunca sinto o meu corpo».

Muitos adultos não sentem o corpo senão quando o situam num plano sexual. Como se o corpo funcionasse, apenas, de suporte ou cabide para o desejo ou manifestação sexual. Mas não enquanto expressão primeira, ou, como considerava Espinosa, uma das duas manifestações da mesma natureza.

A coisa mais importante de todas é que o corpo é o apoio para a mente. Não seria possível haver uma estrutura mental se não houvesse uma estrutura corporal. E é exactamente quando se pensa deste modo que se vê que as duas coisas estão interligadas.

Espinosa foi revolucionário no seu tempo. A sua radicalidade tem que ver com o facto de ter rompido com um paradigma. Apesar dessa modernidade, não fundou alicerces. Porque ainda hoje temos uma marca evidente do dualismo cartesiano.

Está a referir-se a fundar alicerces de escola, por exemplo?

Sim. A linha de pensamento que atravessa os nossos dias está ainda impregnada dos pressupostos cartesianos. É curioso que só agora atentemos em Espinosa. Porque é que acha que isso acontece?

Por variadíssimas razões. O radicalismo espinosiano continua a ser duro, e no séc. XVII era duríssimo. As suas noções políticas e religiosas decorriam automaticamente da sua concepção da natureza humana, e, de facto, não eram convenientes para o tempo. Essa é talvez a razão principal. Não é tanto uma rejeição imediata. É muito curioso pensar que na altura em que viveu, e 10, 20, 30 anos depois, o povo holandês sabia das ideias de Espinosa.

Ah, sim?

Embora os livros tivessem sido publicados anonimamente, embora os livros tivessem sido publicados em latim, e embora houvesse relativamente poucas pessoas que pudessem ler, aquilo que acontecia é que o conhecimento, a súmula daquilo que estava nos livros, tinha sido transmitida ao público. Por exemplo nas barcas, nos canais em Amesterdão havia pessoas que falavam de Espinosa.

É muito poético pensar que nas barcas de Amesterdão havia pessoas a falar de Espinosa!

Havia pessoas a discutir Espinosa! E portanto, havia uma percepção daquilo que estava nos textos de Espinosa e de certo modo uma aceitação. O problema com Espinosa não era o público achar que havia qualquer coisa de revolucionário e inaceitável. Pelo contrário! O público achava as ideias atraentes e iria com elas. Mas essa é exactamente a razão pela qual o poder constituinte não pôde aceitar essas ideias. O que tomba dessas ideias é uma revolução. É uma rejeição de uma hierarquia monárquica, de um Estado que não permite a liberdade de expressão, é uma democratização e maior distribuição do poder económico, e, claro, uma implicação religiosa também, pelo que diz respeito à imortalidade.

Há mesmo uma suspeição de ateísmo em relação a Espinosa.

Exacto. É a partir daí que instituições como as diversas igrejas, a religião organizada judia, protestante e católica, rejeitam Espinosa por inteiro. Durante muitos anos na Holanda as pessoas não podiam comprar os seus livros. Era crime. E vender os livros também era crime. Aquilo que se estabeleceu foi um silêncio ao nível académico. Curiosamente esse silêncio não existiu ao nível do povo. As pessoas sabiam das ideias e as ideias continuaram a minar o sistema. Mas, sem novos pensamentos que adoptam essas ideias e sem os livros que as sustentam, havendo uma barreira legal contra o comerciante dessas ideias, é evidente que a influência de Espinosa veio a cair. No séc. XVIII, mesmo no período das Luzes, uma série de pensadores adoptam as ideias de Espinosa, mas sempre de uma forma cuidadosa. É possível citar Descartes porque Descartes é compatível com o pensamento tradicional, religioso e político. Mas não se pode citar Espinosa. Ou pelo menos, tem que se dar uma no cravo e outra na ferradura, tem que se dizer: «Sim, isto é muito interessante, mas era um homem ímpio e ateu!».

É sobretudo a marca da religião?

É uma mistura. Nesse tempo, religião e poder político são a mesma coisa. Mas essa é a razão principal por que Descartes – que é uma figura notável em todos os aspectos, o facto de ter dito coisas que não estão correctas não diminui em nada a sua grande qualidade de pensador – se mantém e continua a ser hoje uma das figuras mais citadas. Por exemplo, na neurociência não há citações a Espinosa, que é uma das razões por que escrevi o meu novo livro. É exactamente para que leitores em geral, como leitores que são meus colegas, saibam quem é Espinosa.

No seu livro diz que leu Espinosa pela primeira vez na adolescência, que é talvez a melhor altura para o ler, e que, ao recuperá-lo tantos anos mais tarde, percebeu que Espinosa havia permanecido o mesmo, o senhor é que tinha mudado. Por outro lado, para a preparação desta entrevista falei com o espinosista Diogo Pires Aurélio que sempre considerou este filósofo muito mais natural em si que Descartes. Parece que optou por ínvios caminhos até chegar a Espinosa…

É absolutamente verdade. Várias pessoas me têm dito isso. Há umas semanas estava numa conferência sobre o Radical Enlightment e um filósofo holandês comentou: «Quando li o seu “O Erro de Descartes”, disse: Este homem é um espinosiano, mas não está a falar de Espinosa». Voltando à sua pergunta: a minha leitura do Espinosa foi, como pode imaginar, uma leitura superficial de adolescente. Digo que é uma boa altura para ler Espinosa no que concerne à religião e à política porque é uma altura formativa da nossa vida.

Mas o tomo dos afectos, na obra deste autor, é que é o central.

É o central e foi aquele que não li. Julgo que mesmo que tivesse lido não teria percebido. É difícil imaginar o que é que teria percebido se tivesse lido a «Ética» aos 15 anos. É tão hermético, tão enigmático… Há certas ideias que se podem tirar no que diz respeito ao comportamento ou à relação entre Deus e a Natureza; mas não poderia ter percebido ou interpretado Espinosa da forma que percebi e interpretei quando vim para a «Ética» há cinco ou seis anos.

O que é que especificamente suscitou o encontro?

Foi numa altura em que estava na fase final de preparação de «O Sentimento de Si». Tinha que verificar uma certa citação, nem sequer tinha a «Ética» na minha biblioteca, aliás não tinha nenhum livro de Espinosa na minha biblioteca, e pedi-o a um dos meus assistentes. Comecei a ler e não consegui parar. Depois li tudo o que havia para ler, do Espinosa ou sobre o Espinosa. A grande surpresa foi encontrar frases, encontrar conceitos que eram perfeitamente coincidentes com as minhas conclusões em relação aos dados. Em Espinosa não há propriamente dados porque Espinosa, que sabia toda a ciência da época, que pensava como um cientista, não era um cientista. Era um pensador e um fabricador de lentes, o que lhe dava uma grande perspectiva científica: conhecer bem a óptica deu-lhe uma estrutura científica.

Simbolicamente, é interessante que Espinosa trabalhasse com lentes.

É extraordinariamente curioso. E é uma imagem magnífica, porque é a imagem da abertura, do aumento de um determinado objecto para fins científicos. De qualquer modo, as conclusões a que tinha chegado por uma via intuitiva (porque todo o seu trabalho é uma intuição baseada num enorme conhecimento e na reflexão sobre esse conhecimento) se coordenavam com as conclusões a que tenho vindo a chegar, especialmente nos últimos anos, no que diz respeito ao corpo, no que diz respeito à emoção e no que diz respeito à projecção das emoções sobre um espaço social. Essa é a grande beleza do Espinosa. Não é só perceber a ligação com o corpo, não é só perceber que as emoções têm um papel extraordinário a desempenhar na nossa vida, mas também perceber que tudo isso se projecta na nossa conduta e num espaço social.

A partir daí, foi à procura de Espinosa.

O título original, «Looking for Espinosa», tem uma história muito curiosa. A Hanna, a minha mulher, e eu passámos a ir mais frequentemente à Holanda e passámos a fazer visitas a locais ligados com Espinosa. Sempre que chegávamos a Amesterdão a minha mulher dizia: «Here we are again, looking for Espinosa». O título vem exactamente daí.

Ocorreu-me se o monadismo de que fala Espinosa não poderia ser aplicado ao senhor e à sua mulher, também. Como duas manifestações de uma mesma substância indissolúvel. Habituámo-nos a vê-los como um par, ainda que a Hanna, superiormente recatada e discreta, permaneça sempre na penumbra.

É uma ideia muito interessante! Gosto da sua descrição dela, ela apreciaria muito a sua descrição de recato. A Hanna: não é só não gostar de falar, é que não fala! Eu não tenho geralmente grande problema de falar sobre o trabalho, a menos que se trate de razões publicitárias, e aí não gosto. Mas, para acabar a história: começou aí essa procura e essa procura levou a um estruturar de um livro que iria acontecer de qualquer maneira, mas de uma forma muito diferente. Este livro teria acontecido possivelmente nesta mesma altura mas com a estutura d’«O Erro de Descartes» e d’«O Sentimento de Si».

Que estrutura é essa?

Uma estrutura em que há o contar de uma história, o reflectir sobre dados científicos, e uma série de conclusões sobre as consequências desses dados. Mas, tal como disse às pessoas que me perguntavam sobre isto: «Spinosa hijacked a project». Achei que não era possível escrever este livro sobre os novos dados da neurologia do sentir, que constituem 80% do livro, sem enquadrar esses dados em Espinosa. Passou a ser uma necessidade. Fiz uma busca para saber quantas citações havia de Espinosa por parte de neurocientistas; podem-se contar pelos dedos de uma mão. Ninguém fala de Espinosa em neurociência. Toda a gente fala de Descartes, mesmo que nunca tenham lido Descartes, mesmo que não saibam patavina sobre Descartes.

E quais são os outros filósofos, já agora?

São muito poucos. Descartes é a figura dominante das citações de neurocientistas à filosofia. E claro que tudo isso vem porque o Descartes teve uma ideia fabulosa, teve um soundbite: «Penso, logo existo». É o melhor soundbite possível!

Quer dizer que não é só a sua paixão pela literatura e pelas figuras de romance que o faz pegar com tanto empenho em Espinosa…

Não, não é de todo. Já me perguntaram se tinha utilizado Espinosa como estratégia literária, como estratégia de apresentação das ideias. De forma nenhuma! Nunca escrevi um livro com esta estrutura. A estrutura vem da necessidade de falar desta pessoa. Também me têm perguntado se tenho uma identificação com Espinosa. Eu diria que é praticamente o contrário. É uma anti-identificação com Espinosa. Como é possível viver da forma que vivia e conseguir fazer um trabalho tão bom? Ele vivia de forma que eu não aceitaria ou não gostaria de viver. Era uma pessoa isolada, não nos primeiros anos de vida, mas decerto no período em que esteve a trabalhar com mais afinco e produtividade, era uma pessoa que não tinha muitos amigos…

Era um asceta.

Uma vida de isolamento e ascetismo. Não vivia com grande conforto, não tinha posses de espécie alguma, não tinha recursos técnicos.

O que é que acha que comoveria Espinosa?

A confrontação do belo e claro. A confrontação com uma explicação particularmente clara. É um pouco aquilo que Einstein teria. Há uma relação muito curiosa entre Einstein e Espinosa. O filósofo preferido de Einstein era Espinosa. Há uma série de frases de Einstein que descrevem aquilo que o comove. E aquilo que o comove é haver uma explicação clara.

Ainda as lentes…
O Einstein quando via uma equação que descrevia um fenómeno de forma muito correcta, não dizia «This is very correct». Dizia: «This is beautifull!». E uma equação que não resolvia o problema: «This is ugly». Descrevia sempre a correcção ou incorrecção de um modo estético. Julgo que para Espinosa seria a mesma coisa.

Para si, também assumiria essa forma? Quando assisti à sua conferência que encerrou a ExperimentaDesign, fiquei muito impressionada com a ideia de que pode sentir comoção perante obras de arte, nomeadamente uma obra de arquitectura de Mies Van der Rohe.

Ainda bem que se lembra disso.

Marcou-me a ideia de uma enorme depuração e elegância e clareza.

Historicamente é curioso pensar em Mies Van Der Rohe e depois pensar na relação entre o Mies Van Der Rohe e a mesma região de que estamos a falar. Mies Van Der Rohe nasceu em Aachen, que é uma cidade do oeste alemão, mas que está do outro lado da fronteira com a Holanda. Parte da família dele é holandesa. A estética desta região dos Países Baixos tem muito a ver com a simplicidade de linhas, com uma certa clareza do pensar, com uma certa organização – a simplificação de hierarquias, uma diferente estrutura urbana. Há umas ligações muito misteriosas. Mas isto não é para esta conversa. Fica para uma outra.

«Quem está aí?», que recupera para um dos capítulos mais interessantes do seu livro, é a pergunta que Hamlet faz e é, formulada de outro modo, a pergunta que Alice faz no País das Maravilhas (quando diz «O que é isto?»). Trata-se de saber onde se está e quem está, que são perguntas centrais em si. Porque o seu ponto de vista é sempre o interior. É sempre isso que lhe interessa.

Há diversos níveis de valor para o tipo de trabalho que estamos a fazer. Claro que há o valor prático. É bem prático saber mais sobre a neurobiologia da emoção e do sentimento porque isso tem consequências bio-médicas óbvias. Só se pode tratar bem a depressão, a dor, a toxicomania desde que se saiba como é que o sistema funciona. Todo este conhecimento é fundamental para se ter uma concepção mais pormenorizada e possivelmente mais correcta do que é a natureza humana. Todas essas questões, «Quem está aí?» e «Quem somos?» e «Onde estamos?», são questões centrais de qualquer apreciação da natureza humana, de qualquer apreciação daquilo que é ser e estar humanamente.

São essas questões que mais lhe interessam, ou imperam as de carácter prático?

É simpático pensar que uma actividade científica dentro da neurobiologia não tem só esses valores práticos que dizem respeito à aplicação biomédica, à aplicação para o diagnóstico, mas também outros valores práticos no que diz respeito à concepção do ser humano. Parte daquilo com que lidamos em matéria de conflito social só pode ser bem compreendido e resolvido se soubermos mais sobre a natureza. Porque a definição do conflito e o aparecimento do conflito têm a ver com a forma como concebemos a natureza do Bem ou Mal. Há esta esperança. Como deve reconhecer, sou um optimista, um optimista reservado. Eu quero ser um optimista, faço possível por ser um optimista.

Mas olhe que disfarça bem. Parece mesmo optimista.

E sou… As pessoas estão sempre a perguntar-me como é que posso ser optimista com o mundo da maneira como está? É muito simples. É que se não se for optimista, o mundo vai ser ainda pior do que é. A única esperança de melhoria é ser optimista, mesmo um pouco à «contre-cour».

E aí entra também a arte para nos salvar?

Absolutamente! É uma das grandes vias espirituais. A música, a pintura, a arquitectura. Apesar de todas as coisas más que estão a acontecer no mundo há sempre coisas boas. As coisas más são períodos de transição que espero que se resolvam rapidamente. É sempre preciso lembrar às pessoas que grande parte da década de 90 foi uma época extraordinariamente forte, por exemplo, para a cultura ocidental. Houve numerosos problemas, mas houve progresso. Progresso social. Foi um período de relativa paz, (quase 10 anos de muito pouco em matéria de guerras), e houve várias coisas que correram bem. Uma das coisas que têm estado a correr bem é uma descoberta daquilo que é a arquitectura. Há uma enorme atenção que se está a dar a grandes arquitectos modernos. Veja aqui em Portugal o Siza, o Souto Moura, ou o Calatrava em Espanha, ou o Frank Gehry… Não só fazem edifícios que são belos e modernos na sua linguagem arquitectónica, mas estão constantemente a lembrar às pessoas que aqueles edifícios são belos por uma certa razão e podem promover um certo bem-estar. Isso é relativamente novo.

É uma recuperação da velha ideia platónica de «O bom é belo»?

É. Isso é um valor extraordinariamente curioso. Claro que ao mesmo tempo há o comercialismo todo, mas não nos podemos concentrar só naquilo que é mau, temos que pensar nestas coisas que são de facto magníficas e que estão a acontecer. E que estão a acontecer um pouco por toda a parte.

Publicado originalmente no Diário de Notícias em 2003

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