Lições de 2015 | História de António Filipe | in Jornal Expresso, 04-12-2023

O que se passou entre 2015 e 2019 na vida política nacional encerra lições valiosas que não podem deixar de ser tidas em conta no momento em que o país enfrenta um novo ato eleitoral em 10 de março de 2024

Ao admitir na noite das eleições de outubro de 2015 que o PS só não formaria Governo se não quisesse, Jerónimo de Sousa abriu uma fase na vida política nacional que muitos consideravam impossível.

Relembremos a fita do tempo: a coligação PSD/CDS tinha sido a força política mais votada e Pedro Passos Coelho já tinha assumido a vitória apesar da coligação ter perdido a maioria absoluta de que dispôs entre 2011 e 2015. A formação de um novo Governo PSD/CDS teria de contar pelo menos com a abstenção do PS.

O PS, pela voz de António Costa, já tinha assumido a derrota e felicitado o vencedor. Preparava-se para ficar na oposição, sem esclarecer qual seria a sua atitude relativamente ao Governo que se viesse a formar, e o que estava no horizonte do PS era um ajuste de contas interno que levaria certamente à substituição do Secretário-geral. A ideia posteriormente construída de que António Costa já tinha congeminado antecipadamente a possibilidade de formar Governo com o apoio dos Partidos de esquerda não passa de uma fantasia que o discurso da noite de 10 de outubro de 2015 claramente desmente.

O BE tinha obtido um bom resultado, mesmo acima do que era previsível umas semanas antes, mas também já tinha assumido que o seu papel naquela legislatura seria o de oposição ao Governo que se viesse a formar.

A declaração de Jerónimo de Sousa virou a mesa ao contrário. Se o PS quisesse formar Governo, assumindo o compromisso de reposição de direitos e rendimentos que tinham sido subtraídos aos trabalhadores e pensionistas portugueses pelo Governo PSD/CDS e de aceitar, como se dizia na altura, virar a página da austeridade, poderia contar com o empenhamento do PCP para impedir a continuação do Governo de direita PSD/CDS.

Nunca esteve em cima da mesa a possibilidade de uma coligação governamental. O PCP deixou sempre bem claro que nem o PS nem o PCP tinham mudado de natureza ou abdicado das diferenças que mantinham. A questão era a emergência de travar a política de direita levada a cabo pelo PSD e pelo CDS com base em compromissos concretos a aprovar na Assembleia da República. Não houve da parte do PCP nenhuma aprovação expressa do Programa do Governo, dado que a Constituição não a exige, e o compromisso assumido foi o de analisar cada proposta em discussão na Assembleia da República – Orçamentos incluídos – na base do seu conteúdo e da fidelidade aos compromissos assumidos.

É conhecida a oposição de Cavaco Silva a esta solução e tudo o que fez para a impedir, dando desde logo posse a um Governo liderado por Pedro Passos Coelho que, já se sabia, veria o seu Programa rejeitado pela Assembleia da República. Mesmo após essa rejeição, Cavaco Silva resistiu, em nome da teoria de que viria aí o diabo se as políticas de austeridade fossem revertidas, e vieram mesmo ao de cima teorias, de feição golpista, quanto à possibilidade de haver governos de iniciativa presidencial sem apoio parlamentar.

A exigência de Cavaco Silva era um papel escrito, o que obrigou o PS a negociar com cada um dos Partidos à sua esquerda – PCP, BE e PEV – um documento contendo compromissos concretos para a legislatura que tornou impossível a Cavaco Silva manter a sua oposição.

A atitude do PCP logo na noite das eleições encerra desde logo duas importantes lições a reter:

Primeira, a de que para derrotar a direita e impedir um Governo de direita não é necessário votar no PS. Como se demonstrou em 2015, o voto decisivo para afastar a direita do Governo não foi o voto no PS, mas na CDU.

Segunda, a de que era completamente falsa a ideia, amplamente difundida em todas as campanhas eleitorais do PS, de que o PCP fazia do PS o seu “inimigo principal” ao combater o chamado “voto útil”. Ficou cabalmente demonstrado que o PCP nunca se enganou no adversário.

A reação da direita perante o seu afastamento do Governo conheceu várias fases.

A primeira, foi contestar a solução governativa com base na ideia de que o Partido mais votado deve poder governar mesmo que não tenha apoio parlamentar suficiente para tal. Ideia sem qualquer base constitucional. Nos termos constitucionais, a formação do Governo deve ter em conta os resultados eleitorais, e a avaliação desses resultados não consiste em saber qual foi o Partido mais votado, mas em saber qual a solução governativa capaz de obter o suporte parlamentar necessário para não ser rejeitado. Mal sabiam os partidos da direita, ao usar tais argumentos, que teriam de os engolir quando, alguns anos depois, formaram Governo nos Açores relegando o Partido mais votado para a oposição.

Concretizada a solução governativa com a entrada do Governo do PS em efetividade de funções, a direita batizou-a pejorativamente de “geringonça”, apelido que ficou para a posteridade mediática, ou não fossem os órgãos de comunicação social dominantes claramente hostis a essa solução, na medida em que ela veio pôr em causa dogmas mediaticamente assumidos como inevitabilidades.

Sempre recusei adotar tal terminologia e normalizar uma expressão pejorativa como qualificação de uma solução de Governo, até porque tal designação nada tem de inocente.

Desde logo, porque corrobora um elemento central no discurso da direita: a ideia de coligação governamental de esquerda e de responsabilização pluripartidária por um Governo minoritário de um só Partido, o PS.

Sabia-se à partida, e o PCP enfatizou-o repetidamente, que nunca existiu um Governo de coligação nem sequer um Governo de esquerda. Existiu, sim, um Governo minoritário do PS que só foi possível mediante a assunção de determinados compromissos de reposição de direitos e rendimentos.

A ideia de “geringonça” serviu um objetivo central da direita: responsabilizar a esquerda no seu conjunto pelas opções do PS, mesmo sabendo que em aspetos centrais da vida política nacional, como a legislação laboral, a subserviência perante as imposições da União Europeia e a submissão à NATO em matéria de política externa, a convergência do PS, mesmo entre 2015 e 2019, foi sempre com os partidos da direita.

A ideia de “geringonça” colocou os partidos à esquerda do PS entre a parede erguida pelas opções próprias do PS e a espada erguida pelo discurso da direita contra os partidos de esquerda com o “desafio” de que, ou derrubavam o Governo, deitando a perder o que conseguiram conquistar de positivo para o povo português, ou seriam responsáveis por todas as opções do PS, mesmo que essas opções tivessem sido viabilizadas exclusivamente pela direita. Nesse sentido, a ideia de “geringonça” envenenou a política nacional, na medida em que dificultou a compreensão exata do conteúdo e dos limites da solução governativa encontrada.

Tudo visto e ponderado, o PCP só tem de se orgulhar da opção que fez em 2015. Não obstante todas as insuficiências e limitações decorrentes das opções próprias do PS, a legislatura que decorreu entre 2015 e 1019 foi muito positiva para o povo e para o país. Os compromissos que o PS foi obrigado a assumir, muito para além do que continha o seu programa eleitoral, propostos em larga medida pelo PCP, permitiram recuperar muito do que foi perdido sobretudo entre 2009 e 2015 (com Governos do PS, do PSD e do CDS) e conquistar direitos, demonstrando que a austeridade defendida e executada pela direita não era inevitável e que o melhoramento das condições de vida dos trabalhadores e dos reformados é indissociável do desenvolvimento económico do país. Ao contrário do que já então afirmava Luís Montenegro, o país só pode estar melhor se os portugueses estiverem melhor.

A reposição dos quatro feriados que tinham sido abolidos, o fim dos cortes de salários e de subsídios de férias e de Natal, a gratuitidade dos manuais escolares, a enorme redução do valor do passe social e a integração dos diversos meios de transporte, o aumento extraordinário das pensões ou a gratuitidade das creches, foram exemplos de conquistas que só foram possíveis pela decisiva intervenção do PCP.

É certo que o PCP, nas eleições de 2019, não foi beneficiado pelos eleitores, que atribuíram ao PS o mérito exclusivo das medidas adotadas a partir de 2015, mas isso fica para as lições de 2019 que me proponho abordar em próximo artigo.

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