O Futuro Existe, mas é necessário moldá-lo, por Carlos Matos Gomes

Esta seria uma boa altura para separar as águas entre os que propõem um futuro e os que propõem um passado. Para distinguirmos o que, embrulhado em assuntos de mercearia e mexericos, faz parecer que todos são iguais. Os democratas deviam falar do futuro e deixar os neonazis – que é do que se trata quando os enxaguamos como populistas – a falar do regresso ao passado. 

A propósito do que dizem os profetas no advento da época de peditório para recolha das boas vontades do povo. Comecemos por separar os profetas em duas classes, a dos que acreditam que o presente é um futuro que existe, porque vai existir e é racional preparamo-nos para ele, pensando e agindo; e a dos que amaldiçoam e denigrem o presente, propagandeando que o futuro é uma corrupção do passado e propondo que não raciocinemos, que acreditemos.

É vital para o futuro que os distingamos no que é essencial.

O futuro existe, é inevitável e podemos intervir nele, não no sentido de o profetizar, mas no sentido de o moldar. Estamos a interferir no futuro com os nossos atos, com as nossas decisões diárias, incluindo o voto. O futuro existe e, apesar da imprevisibilidade e dos acidentes, podemos intervir para que ele não seja uma fuga para o passado, nem uma corrida para o abismo.

Os movimentos populistas, de que temos exibições diárias reforçadas nesta época de eleições e de caça aos seres mais frágeis, são antes de tudo produtores da utopia do passado feliz que a realidade destruiu. Os bons velhos tempos! Utilizam a velhíssima artimanha do flautista de Hamelin para arrastar ratos até os afogar, e de enfeitiçar as crianças, fechando-as numa caverna, enquanto os habitantes estavam nas igrejas. Os movimentos populistas querem que sejamos as crianças fechadas na caverna, entre muros, enquanto a cidade fica por conta dos opulentos mandantes, com os celeiros cheios e protegidos por sólidas muralhas.

Os movimentos populistas ocidentais, por agora ainda de guarda-roupa democrático e pós-moderno, têm o nazismo como matriz e não fascismo. Por debaixo dos sorrisos e dos sobretudos de pele de camelo, são racistas, xenófobos, supremacistas, veem o mundo segundo a conceção religiosa de um templo com uma capela-mor, onde se concentram os eleitos, rodeada por uma cerca atrás da qual se encontra a multidão. São movimentos restauracionistas, relapsos a enfrentar o futuro, que existe, mas que eles negam. São, no fundo, movimentos de cegueira e cobardia.

Estes movimentos não nasceram do nada — Ex nihilo nihil fit — nem há nada de novo debaixo do sol — nhil sub sole novum. As causas do seu renascimento têm origem num facto historicamente mascarado que é o da real derrota da Europa como resultado da Segunda Guerra Mundial, como o nazismo teve origem na derrota da Alemanha na Grande Guerra. A derrota da Europa, que é equivalente à da Alemanha na Grande Guerra, teve como consequência o fim da milenar centralidade planetária da Europa, de esta ser o centro do mundo, da sua superioridade cultural relativamente a todos as outras. É um ponto de vista com origem nas cruzadas, ou, para quem quiser ir mais atrás, do império romano, mas que deixou de corresponder à realidade. Os populistas propagam essa ilusão e negam a realidade.

Os movimentos apelidados de extrema-direita, de populistas, restauracionistas, nacionalistas que têm medrado pela Europa como cogulemos em estrume resultam do sentimento de perda da antiga grandeza e da consciência dos seus líderes e dos seus especialistas em marketing político da eficácia das promessas de restauração e de vingança contra aqueles que representam a derrota: os naturais dos antigos territórios que os europeus ocuparam e colonizaram e que são vistos por esses movimentos como os rostos da sua humilhação, apresentados como uma ameaça à “civilização europeia”, que para se defender deve fechar-se sobre si. São movimentos de apelo ao medo, de fuga para o interior das tocas, e de irracionalidade. A Europa deve o seu progresso ao contacto com outros povos, mesmo quando violenta, à abertura e não ao fechamento. A ideologia do fechamento, do isolamento, as medidas segregacionistas, racistas que estão a ser tomadas, o ódio ao estrangeiro, a deportação, o afogamento, os campos de concentração, satisfazem a irracionalidade associada ao medo, fornecem votos a curto prazo, mas conduzem aos desastres conhecidos do passado: todas as muralhas foram derrubadas, as de Jericó, a da China, a muralha de Adriano, o muro de Berlim. A sensação de confiança que as muralhas conferem são uma falácia. É uma falácia o que os populistas estão a prometer. É o caminho para um futuro de ruínas.

Os movimentos neonazis, que é o que temos em diversas versões desde Portugal à Ucrânia e desde os países bálticos, da Escandinávia a Itália e à Grécia, de Oeste a Leste e de Norte a Sul da Europa, prometem um passado que a que não é possível regressar — mesmo que tivesse sido de grandeza e felicidade, o que não corresponde à realidade, mas às ficções que sobre ele foram sendo construídas — e abdicam de propor um futuro que possa existir, um futuro que possam ajudar a modular. Na realidade, com exceção da construção de muros — muros físicos, administrativos, ou mentais — estes movimentos nada têm a propor, apenas gritam e esbracejam anunciando o fim do mundo. O mundo global existe e não vai deixar de existir. Não há desinvenções. As armas nucleares existem, os satélites e os sistemas de informação que registam os mais simples e comuns atos da nossa vida existem e não vão deixar de existir, os vírus existem e não conhecem muros nem autorizações de residência, os chineses, os indianos, os africanos, os árabes existem e não vão deixar de existir. Ao contrário dos israelitas com os palestinianos, os europeus, de facto apoiantes da política de extermínio de Israel, não os podem eliminar. São demasiados e dispõem dos mesmos saberes dos europeus.

Estamos a ser alvo de seitas apocalíticas, mais do que milenaristas. Nos casos de maior sucesso promovem um caos e prometem um salvador para repor a ordem. Neste momento os profetas do medo estão na fase de promoção do caos. Anunciam o fim do mundo. Os cartazes que pela Europa fora estes grupos colocam a denunciar a “corrupção” e a prometer a “limpeza” são tipicamente nazis. São uma réplica do programa dos nazis. Anunciam um fim do mundo, mas o mundo que está a findar é o que eles promoveram ao longo dos tempos. Esse mundo, sim, está irremediavelmente a morrer, ou já morto. Está, pelo menos, em estado terminal. É o mundo do dinheiro virtual, da manipulação de todos os valores, do uso impune da força, das oligarquias da finança, das multinacionais fora de todas as leis, é o mundo que aqui em Portugal é promovido na versão IPad pela Iniciativa Liberal e na versão entre o grunge e o pimba pelo Chega. São duas faces da mesma moeda. A dupla face dos movimentos populistas é comum a toda a Europa — de um lado o apelo ao que no nazismo foi designado por lupmen, os chegas, e no outro o apelo aos crentes que o sucesso é fruto de cotoveladas na concorrência e de fundar uma start up, ou um unicórnio, os da iniciativa!

Mas, na realidade, não estamos no fim do mundo apregoado pelos populistas, nem no caos do salve-se que puder que promovem. O que está a ocorrer é uma mudança na ordem do mundo. Os movimentos que apelam ao ressentimento, ao medo, querem fazer crer na racionalidade de acreditar que ladrando ao vento este se detém e não levanta as folhas velhas das copas das árvores. Há quem acredite.

Numa época que Marc Augé considerou de “aceleração da História”, o futuro da Europa e de Portugal encontra-se no desenvolvimento e aprofundamento de um programa intercivilizacional, de troca em termos justos, o oposto do que propõem os “venturas” e os liberais europeus. O poder do mundo que está a emergir com vértices na Rússia, na China e na Índia, com os novos protagonistas vindos das geografias do Sul, outrora colonizadas, criaram uma situação que implica um futuro europeu aberto às novas realidades. O oposto do que a atual nomenklatura europeia está a promover!

Sobre o futuro de uma Europa aberta a um relacionamento de largo espetro não ouvimos uma palavra dos movimentos ditos nacionalistas. Nem dos partidos tradicionais, diga-se. Os líderes europeus, da União Europeia e do Reino Unido, também preferem que os líderes nacionais não abordem o papel da Europa na nova ordem que está a surgir diante dos nossos olhos, debaixo dos nossos pés, gostem ou não gostem a presidente da Comissão Europeia, o secretário-geral da Nato, a presidente do Banco Europeu, o primeiro-ministro britânico, ou até o triste ministro dos negócios estrangeiros do governo português.

O discurso reacionário — de resistência a enfrentar os desafios que o futuro inevitavelmente coloca — exige a coragem de olhar para o mundo contemporâneo, com o deslocamento do tradicional eixo do Norte Global, para um eixo Sul Global, onde se anunciam outros futuros. Nenhum dos partidos aborda esta necessidade. Sinal que o discurso de apelo ao passado e ao imediato rende mais do que o do futuro. É uma vitória dos populistas. É um erro adotar o discurso dos demagogos para os combater, porque eles são muito mais aptos — é a sua natureza. O aumento da abstenção e o deslocamento de eleitores para movimentos anti e passadistas com aparência pós-moderna têm uma explicação na falta de diferenças, na aceitação de argumentar sobre o absurdo e o vazio, de colaborar no ruído.

A campanha eleitoral, como todas as campanhas eleitorais e todas as ocasiões, seria uma boa oportunidade de os políticos marcarem a diferença entre os que propõem um futuro, procurando a compreensão dos novos fenómenos, de contribuir para o entendimento das novas dimensões da interculturalidade, das novas geografias de poder, das novas atitudes dos povos e de colocar Portugal e a Europa no mundo, enquanto espaços saídos da descolonização, no mundo dos atuais conflitos, da revolução tecnológica e os movimentos visíveis e invisíveis, transparentes ou subterrâneos, que propõem um passado mascarado de novidade, que promovem a intolerância com o argumento de uma superioridade que apenas ilude os crentes. Devia existir e ser clara uma linha de demarcação e essa linha não existe.

A visão do futuro, ou sobre o futuro devia ser o elemento distintivo entre o aceitável e o inadmissível. Quando aqueles que têm, ou deviam ter, propostas para o futuro se deixam arrastar pelos que se limitam a procurar a lama para se chafurdarem nela, estão a dar razão aos que dizem que são todos iguais e afirmam que não sabem quem escolher ou em quem votar.

Numa competição de demagogia os demagogos ganham. Esse é o seu campo, é o campo dos cobardes e dos sem escrúpulos. Os que se situam noutro campo, os defensores de um futuro viável e mais justo, deviam recusar esse ringue de confronto. Mas é evidente que quando o “sistema” europeu se está a suicidar lentamente ao aderir com aparente entusiasmo à guerra por procuração dos Estados Unidos contra Rússia na Ucrânia, quando a Europa nada tem a dizer sobre o genocídio em Gaza, nem sobre a questão palestiniana, nem sobre o sionismo, quando o Banco Central Europeu está subordinado à Reserva Federal americana, quando Europa aceita a destruição da já débil indústria militar europeia, substituída pelo complexo militar – industrial americano, quando a Europa opta por perder as vantagens competitivas proporcionadas pela Rússia enquanto fonte de matérias primas e mercado a troco de uma aliança que apenas beneficia um dos parceiros, quando aceita a NATO como um exército auxiliar do dos Estados Unidos, e destrói o estado social europeu, substituído pela lei da selva do neoliberalismo, então, de facto, não há diferenças e não há outro futuro a não ser o dos populistas: regimes de privilégios numa Europa que será perla primeira vez um espaço subordinado, vassalo, onde os apelos ao falso nacionalismo e à grandeza do passado têm excelentes condições de sucesso.

Carlos Matos Gomes

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