O que é uma mulher? | Manuel S. Fonseca

March 30, 2024 | Publicado no Jornal de Negócios

Em vez de perguntar o que é uma mulher, prefiro perguntar que aventura há em cada mulher? Lembro-me das ruas nocturnas do cinema dos anos 50 e 60, em que a minha mente se liquefazia, e de como esse cinema, e com ele o romance, louvava a mulher boémia, transgressora e aventureira. E logo me lembro que, na aurora desse cinema, surgia um filme de Rossellini, “Viagem a Itália”.

Que mulher era a mulher desse filme? Uma inglesa que vinha de viagem, ao lado do marido, inglesa de olhar perplexo a ver as grávidas barrigas italianas de Nápoles ou uma prostitua de rua, eis o que e quem era essa mulher. Que aventura havia nessa mulher casada, em angústias de conjugalidade, a pensar já num divórcio, mas que, perdida de repente numa pagã procissão católica, de andores e nossas senhoras romanas, se reconcilia com o amor, o marido, o casal?

Um outro belíssimo cineasta, Eric Rohmer, perguntava, naquela voz alta que é pôr tudo por escrito, se a mais autêntica aventureira, limpidamente transgressora, não seria, afinal, a fiel mulher casada? Era então uma pergunta de esquerda, quase revolucionária, contra um “establishment” todo cerzido em rebeldias, ousadias e orgias de amor livre. De que cor ou ideologia seria hoje a pergunta de Rohmer?

Katherine, assim se chamava a personagem do filme de Rossellini. Mas estava longe de ser inglesa a actriz que lhe dava corpo. O rosto de Katherine era o rosto da sueca Ingrid Bergman. E se querem saber que mulher era Ingrid, eu digo. Sueca embora, era uma actriz americana, actriz de Hitchcock, já uma das maiores vedetas de Hollywood. Vira um filme de Rossellini, cinema pobre, produção de tuta e meia, e escrevera-lhe. Encontraram-se e, ó terra de Deus, entraram os dois em erupção como se fossem os vulcões sicilianos de Stromboli. Eis a aventura que havia na mulher chamada Ingrid Bergman: por amor ao pobre cineasta italiano casado, largou o marido sueco, rasgou o contrato com Hollywood e, transgressão quase tão ultrajante como mandar bugiar Hollywood, abandonou na América a filha adolescente. Amaram-se e fizeram filhos, nesse tempo em que a demografia europeia ainda não estava no fundo do oceano.

E Joana d’Arc? Soldado e guerreiro, seria mesmo uma mulher? É verdade que Ingrid Bergman foi Joana d’Arc, mas a única e realíssima Joana d’Arc que o cinema conheceu chamou-se Falconetti. Actriz francesa, corre a lenda de que o realizador dinamarquês Dreyer a convidou, ainda o cinema era mudo, para ser a heroína de França em “A Paixão de Joana d’Arc”, e a manteve durante as filmagens em regime de tortura, joelhos no chão até sangrar, repetições de cena, uma longa e arrebatadora sinfonia de grandes planos do seu atormentado rosto, de que, tirano, lhe arrancava as mais rasgadas expressões de dor, humilhação e sacrifício. Há, nesse filme que trata só dos interrogatórios e da execução de Joana, uma lágrima, grossa. E quero falar dessa lágrima.  É uma lágrima de mulher ou uma lágrima de homem? Vejam a cena: os carrascos de Joana d’ Arc – e eu já devia estar só a dizer, de Falconetti – rapam-lhe grosseira, dolorosamente o cabelo. A violência da cena serra Falconetti ao meio. Ela suporta o martírio até que todas as suas contidas lágrimas se juntam numa lágrima só, a escorrer-lhe pela face como um uivo inumano. Filmada a cena, Dreyer, calvinista místico, desatou em soluços e em soluções soçobrou a Falconetti, realizador e actriz abraçados, fundidos nessa lágrima, a mais grossa lágrima que o mundo já viu! Era a lágrima de uma mulher ou também uma lágrima de homem?

Publicado no Jornal de Negócios

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