O riso, o sexo e os palavrões | HUGO GONÇALVES | DN 22-08-2015

Hugo GoncalvesPorque estou a traduzir o romance American Psycho, de Bret Easton Ellis, voltei a pensar em como a língua inglesa tem muito mais palavras do que a nossa para o verbo sorrir – to smile, to grin, to smirk, to simper – e para o verbo rir ou o ato de dar gargalhadas – to laugh, to chukle, to giggle, guffaw, to crack up. Em inglês, estes signos captam diferentes características e gradações. Um sorriso gozão, pretensioso: to smirk. Dar uns risinhos: to giggle. Uma gargalhada forte: guffaw.

De que forma, em Portugal, séculos de Inquisição, de pudor católico, da ideia de transgressão e castigo, e quase meio século de ditadura salazarista – uma polícia política, os bufos, o medo de falar, o “respeitinho é muito bonito” -, podem ter limitado a nossa habilidade de expressar felicidade e humor? Talvez se William Baskerville, protagonista de O Nome da Rosa, usasse o seu engenho neste mistério não se afastasse muito de um dos temas do romance de Umberto Eco: o riso como uma forma subversiva contra o poder. Ou, no nosso caso, a falta dele. Toda a gente faz comédia com Hitler, poucas vezes vi Salazar como protagonista de um sketch ou uma anedota.

A linguagem, como muito bem sabiam Orwell, Estaline ou até George Bush (filho) – “mudanças climáticas” em vez de “aquecimento global”, “Operation Iraq Freedom” em vez de invasão ou guerra – é um magnífico instrumento de controlo e de engano. Mas certamente não foi por decreto ou lábia presidencial que ficámos reduzidos a rir e a sorrir, sem variações mais subtis – porque a subjugação, o medo e a ignorância não costumam produzir sorrisos.

Outra limitação linguística no domínio do prazer – além do riso – encontra-se na forma como muitos insultos estão associados ao sexo e aos órgãos genitais. É algo comum em muitas línguas, mas dizer pussy, mesmo entre ingleses, não é o mesmo do que dizer o seu equivalente em português, com origem no latim – cunnus – que não tem, de longe, a mesma suavidade de pussy (também significa gatinho). Talvez seja a qualidade universal e glamorosa do inglês, disseminada através dos milhares de fucks nos filmes de Scorsese e Tarantino; talvez seja essa influência da TV e do cinema, capaz de domesticar os palavrões à condição romântica do I Love You, Baby. Mas, ressalvando talvez a palavra cunt – que tem o efeito de um garfo a riscar um prato aos ouvidos de muitos anglofalantes -, julgo que os palavrões em inglês não têm a mesma carga – de vergonha, repulsa, brejeirice, imoralidade – do que os seus sinónimos portugueses.

Na nossa língua, os órgãos genitais são frequentemente usados como insulto. Imaginemos a visão menos clínica, e mais popular, das seguintes frases: “aquele pénis é sempre a mesma coisa” (para descrever um homem incapaz); ou “o vagina que vai naquele Fiat não passa do cem na autoestrada (para emascular e acentuar a falta de coragem). Na cultura japonesa, e segundo o livro Cunnus, do espanhol Alberto Hernando, o órgão sexual feminino tem uma conotação agradável, ligada à natureza, à vida, à poesia. Nada a que possamos aspirar quando encontramos, em português, na vasta lista de termos para designar o mesmo, a versão feminina da palavra rato.

Não é apenas uma questão etimológica mas cultural. No Brasil, a verbalização do sexo é muito mais leve, despojada e engraçada – o pipi transforma-se, na passagem para idade adulta, na “perseguida”, e o vinho Periquita – sinónimo de “perseguida” – fez uma campanha publicitária cujo slogan era: “O vinho para você cair de boca.” No Brasil há ainda a curiosidade de que só os homens “comem”, as mulheres “dão para alguém” – numa enganadora noção de poder.

No livro que estou a traduzir há várias cenas de sexo, passá-las para português é um pesadelo, porque ganham, muitas vezes, um carácter grosseiro e pouco sexy, que não têm no original. Os brasileiros escrevem bem histórias de cama – Rubem Fonseca, Reinaldo Moraes, Marçal Aquino, Luiz Biajoni -, mas os portugueses têm mais dificuldade, não por falta de vontade, já me disseram vários escritores, mas porque as palavras necessárias para o descrever – a sonoridade, a vulgaridade – e talvez um pejo ancestral, de sexo com as luzes apagadas – tornem aquilo que devia ser bonito e excitante em algo pouco atraente.

Se o riso é insurgência e o prazer do sexo se pode (e deve) vocalizar, questiono-me por que, sabendo que os portugueses se riem e se vêm, ainda somos tão desajeitados e constritos na hora de falar e escrever sobre o assunto – como evidencia o facto de não ter usado, até ao final deste texto, um único palavrão em português.

Hugo Gonçalves

Escritor

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