Deixem a direita ensinar-nos o que foi o 25 de Abril | in “República dos Pijamas”, 2-5-2024

Com os 50 anos da Revolução dos Cravos, é crucial disputar verdadeiro significado desta. Enquanto entre a esquerda existem dúvidas sobre a componente social de Abril, a direita radical não as tem.

O ano de 2016 mostrou que os oito anos de governos de António Costa ficaram aquém do que poderiam ter sido.

Embora as desilusões com Costa possam parecer um mero palpite lançado nesta newsletter, não estamos sozinhos, e é à direita que encontramos suporte. Esta ajuda-nos a interpretar não só as reformas perdidas de Costa, como também o grande período de reformas estruturais à esquerda – a Revolução de Abril.

OS DEBATES DE 1975

Numa recente coluna no Expresso sobre reforma estruturais, o economista Luís Aguiar-Conraria afirmava: “durante os primeiros seis anos de Costa, sempre fui contra reformas estruturais por um motivo simples: nas condições políticas de então, teriam que ter o acordo do BE e do PCP, o que era uma garantia de que seriam as reformas erradas”.

Segundo o presidente da escola da Economia da Universidade da Universidade do Minho, existia o potencial para reformas, mas não aquelas que desejava. Conraria é insuspeito de ser de esquerda, exceptuando pelos seus próprios critérios. Entre as suas posições está um acriticismo à subida das taxas de juros pelo Banco Central Europeu, chamando estúpido a quem contestou essa medida feita em nome do combate à inflação.  Fez também parte do coro de economistas que argumentavam que as subidas do salário mínimo iam ser nocivas para o país.

Entre aqueles que pensam como Conraria, a perspectiva de reformas sérias em campos como a habitação, saúde e transportes por um PS virado para a esquerda inspiram medo. Atesta a isso a oposição feroz da direita, por vezes delirante, face à aliança que Costa fez em 2015 com os partidos à sua esquerda. 

Por exemplo, em 2016, Adolfo Mesquita Nunes, antigo secretário de Estado do Turismo nomeado pelo CDS-PP, panicava ao afirmar que a “’geringonça’ está a empurrar o país para debates que se faziam em 1975.” Em 2023, Rui Moreira, presidente da Câmara do Porto, apoiado pelo CDS e membro da alta burguesia portuense, não hesitou em classificar o pacote Mais Habitação como sendo  uma “pulsão bolivariana autodestrutiva.” 

Além de nos ajudar a entender a Gerigonça, a direita também nos dá pistas de como interpretar o legado histórico do 25 de Abril 50 anos depois da Revolução dos Cravos. Fá-lo muitas vezes melhor do que discursos à esquerda.

Num programa de rádio, a sua locutora apresentava uma história para mostrar as conquistas de Abril. Nos destaques, estão fatores como o poder beber Coca-Cola, ir à praia de biquini, ou jogar às cartas no comboio. Apesar de as conquistas referenciadas mostrarem o anacronismo do Estado Novo e estarem em boa parte associadas à esquerda, não são os debates de 1975 que preocupam a direita. 

Hoje, em 2016, e em 1975, as grandes preocupações da direita estão noutros lugares. Boa parte da direita vê-se pouco incomodada com aquilo que a locutora valoriza. É no que ainda cria pesadelos entre a burguesia portuguesa que devemos interpretar a realidade da Revolução.

O ABRIL MODERADO?

Apesar de haver uma tentativa de posicionar Abril ao centro, “como uma data neutra, que a todos acolhe, a todos se molda e a todos convém”, este insere-se na procura de “democracia económica” com que a direita nunca conviveu bem.

Muitas vezes esse legado é esquecido pela própria esquerda, resumindo-o à introdução de eleições livres e a alguns direitos civis. Já as franjas mais radicais da direita nunca se esqueceram do significado de Abril.

Sendo hoje mais conhecido pelos hospitais privados CUF, o Grupo Mello foi um dos principais visados pela revolução de Abril. O então maior grupo económico nacional, que sempre contou com o braço forte do Estado para manter a ordem laboral, foi alvo de ocupações, expropriações e os seus líderes foram detidos para depois passar ao exílio. Ao contrário do que hoje é narrado, os afrontamentos contra os patrões não se tratavam de conspirações comunistas, mas sim de iniciativas das bases de trabalhadores. Durante o Verão quente de 1975, os líderes do Grupo Mello foram recebidos pelos trabalhadores ao som da internacional.

Hoje, Vasco de Mello, antigo gestor da Brisa, à frente de uma coligação patronal (Business Roundtable Portugal, BRP), lamenta-se de o sistema fiscal português ser muito mau. As suas esperanças estão numa nova borla fiscal sob a forma da descida do IRC.

Grande parte do criticismo da direita foca-se na atuação do Partido Comunista Português durante o período revolucionário. O tom conspiratório sobre a sua atuação não tem cabimento com a realidade, mas ganhou uma utilidade. Grande parte das vezes serve como sinalização do trauma comum que a velha burguesia sofreu durante o período revolucionário, tanto em Portugal como no processo de descolonização.

É a militância generalizada das classes populares, muitas vezes às margens dos partidos, que atormenta a burguesia. Por exemplo, a mudança da ponte 25 de Abril não partiu de um ato oficial. Numa iniciativa que irritou o então Presidente Francisco Costa Gomes, o coronel João Varela Gomes retirou o nome de Salazar da ponte que liga Lisboa a Almada. Depois de uma sessão pública referente à celebração da implantação da República, em conjunto com operários da Sorefame, foi tomada a iniciativa de a batizar com o nome atual.

No que toca à nacionalização da banca, dois meses antes desta acontecer no seguimento do golpe de direita falhado a 11 de Março de 1975, o Sindicato dos Bancários falava dessa hipótese “a bem da reconstrução do país através de uma estratégia antimonopolista e de uma economia ao serviço do povo”. Antes disso montava uma vigilância apertada contra desvios de fundos para grupos de extrema-direita. Ao contrário de boa parte das vezes, os quadros intermédios viravam-se contra a burguesia em favor das classes populares.

Apesar do recuo da militância popular na sequência de eventos que hoje é centrada no 25 de Novembro, o lastro da militância deu origem à Constituição de 1976 e ao florescimento do Estado Social em Portugal nos anos seguintes. O trauma coletivo persiste entre as famílias burguesas que durante o período revolucionário tiveram a sua posição em risco e que depois foram forçadas a conviver com um novo paradigma social.

O economista João César das Neves, que sempre que se fala de um aumento do salário mínimo antevê uma tragédia nacional (em 2014 era criminoso, em 2018 era mau para os pobres), recorda frequentemente o seu período de serviço cívico como “deprimente”. Quem ouve o economista da Universidade Católica falar sobre os quatro meses na Polícia de Trânsito imagina uma passagem pelo gulag. 

João Cotrim Figueiredo, cabeça de lista da Iniciativa Liberal para as eleições europeias, arrancava a sua primeira campanha eleitoral com a afirmação (através da rede social-corporativa Linkedin) que a geração dos seus filhos não tem metade das oportunidades da sua. Para famílias como as de Cotrim Figueiredo, que estudou num colégio internacional ainda durante o Estado Novo e terminou o ensino superior antes de Portugal entrar na União Europeia, houve de facto um recuo da posição relativa depois do 25 de Abril, dada a democratização do ensino. 

Muita da velha burguesia, mesmo estando hoje numa posição de privilégio face ao grosso dos portugueses, alinha com as palavras de Cotrim. Grande parte perdeu o monopólio educacional que tinha, entre outros benefícios. Mesmo que seja ainda hoje dotada de grande património, não tem dúvidas sobre o significado da Revolução de Abril.

UMA REVOLUÇÃO EM TODA A LINHA

Se nos focarmos nos termos de reformas estruturais, o 25 de Abril de 1974 trouxe um cataclismo, e é isso que o torna numa Revolução. O historiador económico Adam Tooze, de matriz keynesiana, afirmou que, do ponto de vista económico, uma revolução é o momento em que a riqueza (p.ex.: propriedade), em vez de rendimentos (via impostos), passa a ser redistribuída. Através de ocupações e nacionalizações, a Revolução de Abril redistribuiu a propriedade do país, tal como a Revolução Francesa o tinha feito com a distribuição das propriedades dos nobres e a Revolução Mexicana com a nacionalização do petróleo.

Foi este componente de Tooze que transformou o 25 de Abril numa revolução, e não num simples levantamento militar ou apenas no início de uma transição para um regime democrático. Logicamente que não foi a abertura do mercado de refrigerantes aos capitais estrangeiros, ou o relaxamento de normais sociais, que fez com que a burguesia nacional se considere até hoje lesada da revolução. O mesmo pode ser dito para os empresários que recorreram ao uso violência para disciplinar trabalhadores, mesmo depois do 25 de Novembro. As recentes tentativas de elevar o 25 de Novembro são, acima de tudo, uma forma de renegar todo o processo que tornou Abril numa Revolução.

Os defensores desta ideia apontam para Espanha como o modelo de transição sem excessos revolucionários, um diagnóstico que ignora por completo o papel da mobilização popular na construção do Estado Social. Por um lado, é uma abordagem que não considera o papel dos ventos revolucionários portugueses nas cedências da classe dominante espanhola. Por outro lado, assume como inevitável a construção de um Estado Social na periferia europeia, num momento em que o Chile se tornava o laboratório do neoliberalismo.

Tal como a direita veio fazer ao longo das décadas que se seguiram, e como ambiciona hoje, estas reformas aconteceram não só por serem desejáveis, mas com um movimento social por detrás de si. Não é coincidência o único vislumbre que se viu de verdadeiras reformas à esquerda de Estado em Portugal em tempos recentes ter sido antecedidas pelas altas mobilizações sociais que tinham uma energia que ia além das forças parlamentares. Enquanto a sua parte visível foi o acordo entre o Costa e os partidos de esquerda que se aliaram a este, o seu combustível foram os anos de mobilizações.

Por esse motivo, nas celebrações dos 50 anos do 25 de Abril, mais do que defender o legado de Abril, tentamos entender como foi conquistado e como pode ser continuado.


O NOSSO CICLO DE ABRIL TERMINA AQUI

Obrigado por leres este texto. A nossa série de textos focados nos 50 anos da Revolução de Abril terminam aqui. Caso queiras ler, ou reler, as três publicações anteriores, podes encontrá-las abaixo:

– A Ordem do Capital: A Tecnocracia é um projecto de classe
– A Direita quer Rescrever a Revolução de Abril
– O ano de 2016: lições das vitórias e das derrotas da Geringonça

Voltaremos na semana de 13 de Maio.

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