UMA LONGA CONVERSA | António Galopim de Carvalho

CONVERSA AVULSA COM UM INTERLOCUTOR IMAGINÁRIOSOBRE A IGREJA, O ENSINO, AS UNIVERSIDADES, O FEUDALISMO, AS CIDADES E OS ARTESÃOS, AO TEMPO DO REI D. AFONSO HENRIQUES.

– O Cristianismo deve ter sido a ponte entre os invasores germânicos e do Norte da Europa e o Império Romano em desvanecimento?!

– Sim. Por outras palavras, foi o elo de ligação entre o paganismo e o mundo romano, que se expandiu pela Europa ocidental, acabando por dar grande poder à Igreja Católica e à figura do Papa.

– Igreja Católica é uma expressão que toda a gente sabe dizer, mas que nem todos sabem o verdadeiro sentido.

– A palavra igreja vem do grego ekklesia, através do latim ecclesia, que significa assembleia. Designa, pois, um edifício destinado a reunir pessoas, mas o seu âmbito alargou-se ao de uma instituição. A palavra católica chegou-nos do grego katholikós, através do latim catholicus, que quer dizer universal. Com o significado das palavras bem explicado, o discurso fica sempre mais claro.

– Podemos dizer que a religião católica foi algo dominante na Idade Média?

– Sem dúvida. Durante os dez séculos da sociedade medieval o clero esteve sempre no topo da hierarquia. Logo abaixo, situava-se a nobreza e, na base desta pirâmide, estavam os servos, os únicos que trabalhavam e sustentavam as duas classes superiores. Podemos ainda considerar a existência dos vilões, entendidos como indivíduos livres que, temporariamente, ofereciam a sua força de trabalho a um senhor feudal. Estavam livres dos vínculos servis tradicionais e, assim, podiam transitar por onde lhes aprouvesse. Embora escassos, sem grande significado na sociedade havia ainda os escravos, geralmente homens e mulheres cativos, na sequência de actos e guerra, que ficavam reféns de múltiplos trabalhos domésticos.

– Isso eu sei e sei, ainda, que a Idade Média foi um tempo dito de Teocentrismo, em que Deus estava no centro do mundo, em que a veneração a Ele e o temor do Seu castigo eram uma constante na sociedade.

– Neste quadro, vindo da Alta Idade Média, a influência da Igreja Católica que conheci, em todos os aspectos do dia-a-dia das gentes, era imensa. A fé inspirava e determinava os mínimos atos da vida cotidiana. Amestrados no temor do fogo do Inferno e na ideia de que a Igreja era a intermediária entre Deus e os homens, os fieis aceitavam que a graça divina só seria alcançada através dos sacramentos e das normas morais ensinadas nas Santas Escrituras. O Papa, na inquestionável qualidade de Deus na terra, dominava, não só na religião, como na sociedade e na política, com poderes para excomungar qualquer um que se afastasse das leis de Deus e investir, coroar ou destituir reis. E isso aconteceu, por exemplo, com D. Afonso Henriques, confirmado rei de Portugal, pelo Papa Alexandre III, através da bula Manifestis probatum, em 1179, e com D. Sancho II, excomungado e destituído, como rex inutilis, pelo Papa Inocêncio IV, através da bula Grandi non immerito, de 1245.

– Podemos, pois, resumidamente, concluir que, neste quadro, o clero foi a classe social atuante na formação do saber e da mentalidade medieval onde, acima de tudo, imperava a crença num Deus todo poderoso e justiceiro, o temor pelo Inferno e onde os fiéis eram impelidos a renunciar aos prazeres mundanos, em busca da salvação das suas almas.

– A um outro nível temos também de reconhecer que o alastramento do cristianismo foi o motor da vida cultural na Europa ocidental iniciado com o surgimento de mosteiros da Ordem de São Bento ou dos Beneditinos, uma das maiores ordens monásticas do mundo, fundada por São Bento de Núrsia (480-547). No mosteiro de Monte Cassino, na Campânia, em Itália, este notável monge concebeu e pôs em prática a regula (termo latino que quer dizer regra) que determinava que os monges se fixassem num dado local e, com especial atenção, se dedicassem ao estudo e ao ensino, prestassem obediência ao abade (do grego abbas, que significa pai), fizessem votos de pobreza e de castidade, praticassem a hospitalidade e a caridade, trabalhassem a fim de garantirem a sua subsistência e rezassem. Nasceu aqui e assim o movimento monacal, a força de ânimo que levou a criação dos mosteiros. Diga-se que as palavras monacal e monge radicam ambas no grego, monakhós, através do latim, monachus, que quer dizer “solitário”, “o que vive só”.

– E Santo Isidoro de Sevilha?

– É um outro exemplo do papel do alastramento do cristianismo no progresso do conhecimento. Nasceu em Cartagena, Espanha, por volta e 560 e faleceu em Sevilha, onde foi bispo e desenvolveu o essencial da sus obra, em 636. Isidorus Hispaniensis de seu nome, foi um notável teólogo e Doutor da Igreja, sendo lembrado como um dos criadores do enciclopedismo. Deixou-nos “Etymologiae sive Origines”, uma enciclopédia que juntou fragmentos de muitos livros antigos que, se teriam perdido se não fosse o seu valioso trabalho. Esta volumosa obra reúne cerca de vinte livros que reúnem muito do saber de então, entre temas que vão da teologia aos objectos de uso corrente, passando, entre muitos outros, por medicina, geografia, agricultura, animais metais e pedras, constituindo uma preciosa fonte de histórias e conhecimentos clássicos para os escritores de então. A terminar devo dizer que “Etymologiae sive Origines” é considerada uma das principais fontes de informação sobre a cultura, nos seus múltiplos aspectos, durante a Alta Idade Média. Que foi a obra escrita mais consultada nas bibliotecas medievais, tendo sido impressa em, pelo menos, dez edições entre 1470 e 1530, pelo que assumiu grande popularidade no Renascimento.

– Obrigado. Continuai, pois.

– Fechados face ao mundo exterior, criando e ampliando as suas bibliotecas, os monges copistas dos mosteiros beneditinos contribuíram de forma decisiva para salvar do esquecimento importantes obras escritas da Antiguidade. Foi nestes mosteiros, espalhados pela Europa, longe do bulício das cidades, que surgiram as Escolas Monacais ou Monásticas.

– Os únicos centros de ensino praticado nesse tempo?

– Talvez. Não sei precisar, se ao mesmo tempo, se um pouco mais tarde, surgiram, nas cidades e na dependência de um bispo, as Escolas Episcopais, visando, em especial, a formação elementos do clero, habilitados para actuarem junto da comunidade dos fiéis, e de leigos, instruídos para defenderem a doutrina da Igreja no seio da comunidade.

– Mas, continuando…

– As escolas Monacais começaram por visar apenas a formação de futuros monges, em regime de internato. Mais tarde, passaram a funcionar em regime de externato, tendo por objectivo a formação de leigos cultos, de entre a nobreza e de seus servidores, ensinando-os a ler e escrever, facultando-lhes noções básicas de aritmética e levando-os a conhecer a bíblia. Numa fase mais avançada, estas escolas ministraram o ensino do latim, gramática, retórica e dialéctica. A concluir posso dizer que os mosteiros beneditinos foram importantes centros de sabedoria, que foram os herdeiros e os depositários do essencial do saber do mundo antigo e que tiveram um papel decisivo na história da civilização ocidental.

– Mosteiros e conventos. Que diferença há entre eles?

– Os mosteiros são habitados por monges ou monjas, governados por um abade ou por uma abadessa. Nos mosteiros vive-se, por regra, em solidão. Os conventos são habitados por frades ou freiras, maneiras próprias de dizer irmãos ou irmãs. Neles, a vida é feita em comunidade. Reparai que a palavra convento tem raiz no latim conventum, com o significado de ajuntamento.

– Muito obrigado. Peço desculpa pela interrupção. Continuai, pois.

– Nos séculos que se seguiram, o estudo e o ensino transitaram dos mosteiros para as chamadas Escolas Catedrais, criadas pelo Concílio de Roma de 1070. Estas, por seu turno, foram os embriões das Universidades nos centros urbanos mais importantes. Bolonha, em 1088, Paris, em 1150 e Oxford, em 1167, são apenas três de entre as dezenas de Universidades que, nesse tempo, floresceram por toda a Europa, algumas das quais receberam o título prestigiado de Estudos Gerais.

– E em Portugal, também.

– Sim, mas cerca de dois séculos depois, em 1290, na cidade de Coimbra. Em 1 de Março desse ano, D. Dinis assinou, na cidade de Leiria, o documento Scientiae Thesaurus Mirabilis, que deu nascimento à nossa primeira Universidade, no que teve a confirmação, no mesmo ano, pelo Papa Nicholau IV. Continuando, devo acrescentar que, além de instituições de ensino de diversas disciplinas, as Universidades medievais foram também centros de investigação filosófica, no sentido mais amplo da palavra.

– E que disciplinas eram essas?

– Que eu me lembre, eram teologia, gramática, retórica, dialéctica, aritmética, geometria, astronomia, direito, medicina e música. Os seus professores, todos eles membros da Igreja, com destaque para os frades mendicantes franciscanos e dominicanos, viajavam por todo o espaço europeu, no exercício das suas competências, criando e desenvolvendo comunidades científicas e, ao mesmo tempo, pregando e defendendo a fé cristã.

– O feudalismo foi outra das marcas do vosso tempo?

– Foi uma das mais significativas marcas da Idade Média. Foi um tempo de ruralização em que a principal riqueza passou a estar na terra. Numa sociedade em que a agricultura era a principal atividade económica, distinguiam-se os donos da terra, geralmente, elementos destacados da nobreza, conhecidos por senhores feudais, e os servos, que trabalhavam nas terras desses senhores, tendo por obrigação, pagar-lhes um tributo, que podia ser a entrega de parte do que ali produziam. Ao contrário da Antiguidade, onde a mão de obra era a dos escravos, na Idade Média esta actividade era exercida pelos servos. Era, ainda, obrigação dos servos responder ao chamamento dos senhores, sempre que estes o fizessem, por ocasião das guerras que travassem. Guerras que, muitas vezes, aconteciam, fosse em defesa de suas terras, por uns, ou para as alargar, por outros.

– Para além dos servos, também havia os vilões e os escravos.

– Exacto. Os vilões, entendidos como indivíduos livres que, temporariamente, ofereciam a sua força de trabalho a um senhor feudal, estavam livres dos vínculos servis tradicionais e, assim, podiam transitar por onde lhes aprouvesse. Sem grande significado na sociedade medieval, os escravos, geralmente homens e mulheres cativos, na sequência de actos e guerra, ficavam reféns de múltiplos trabalhos domésticos ditados pelas competências que demonstrassem.

– E quanto ao poder?

– Em termos muito gerais, pode dizer-se que, enquanto em Roma o poder estava concentrado na pessoa do imperador, na Idade Média europeia o poder diluía-se por entre as mãos dos muitos e poderosos senhores feudais, com poder absoluto nos seus feudos, sendo que alguns tinham os seus próprios exércitos.

De onde veio a palavra feudo?

Essa palavra foi introduzida pelo invasor germânico no mundo latino, onde se converteu em feudum. Radica no frâncico fehu od, expressão na qual fehu significa gado e -od significa bens.

– Frâncico?

– Era a língua dos francos, uma das tribos germânicas que invadiram o espaço do Império Romano. Mas, continuando, podemos dizer que o feudo como uma unidade de produção agrícola e que constituiu o essencial das relações sociais da Idade Média, em que o castelo era a residência fortificada do senhor feudal. Posso ainda dizer que a organização dos feudos teve por base duas tradições ou culturas. Uma delas, de origem romana, estabelecia que o senhor da terra dava proteção e trabalho aos servos; a outra, de origem germânica, baseava a relação entre o suserano e o vassalo num estatuto de lealdade e honra. Ao receber a terra, o vassalo jurava fidelidade ao suserano e prometia-lhe lealdade e serviço na guerra.

– Em troca, o suserano garantia-lhe protecção.

– Saiba que a palavra ”suserano” veio do francês do século XV, “suserain”, com o significado de soberano, no sentido de chefe feudal. Saiba-se, ainda, que a palavra “vassalo”, com origem no celta, “vassus”, chegou-nos através do latim, “vassalus”, que quer dizer servidor.

– Havia várias hierarquias de suserano e de vassalo.

– Sim. Por exemplo, um vassalo podia ser suserano de um vassalo de menor importância. O mais notável exemplo desta hierarquia era a suserania papal em relação a reis.

– E, neste quadro, qual era a situação dos cavaleiros?

Eram homens da nobreza, ao serviço dos senhores feudais. Desde criança eram mentalizados em virtudes, como a valentia, a honra, a lealdade e a fé em Cristo, e preparados no manejo das armas e nas lides da guerra. Participavam muitas vezes em torneios, tidos por uma das diversões do feudalismo.

– E sobre as cidades do vosso tempo, o que vos ocorre dizer?

– Neste capítulo, devo começar por dizer que na Baixa Idade Média, passada a fase de ruralização da sociedade, as cidades, ou burgos, voltaram a ter importância, dando lugar ao aparecimento da burguesia. Devo acrescentar que a palavra burgo radica no latim burgus, que significa, tanto uma pequena fortaleza, como uma cidadela povoada. Acontece que que uma nova forma de trabalhar a terra melhorou e aumentou a produção agrícola, o que levou muita gente a abandonar o campo e a procurar modo de vida nas cidades. Os artesãos encontraram nelas o seu modo de vida. O comércio, com destaque para as feiras, intensificou-se, geralmente, sob a forma de troca de mercadorias.

– Falai-me dos artesãos.

– À semelhança dos que ainda resistem, eram homens que fabricavam produtos diversos, essenciais ao dia-a-dia das gentes, através de um processo manual ou com auxílio de algumas ferramentas. Já existiam dispersos, mas acabaram por se concentrar nas cidades. Muitos deles, unidos por laços de entreajuda e de defesa mútua, organizavam-se em corporações de ofícios ou guildas, onde também se praticava ensino essencialmente oficinal. De entre os artesãos, distinguiam-se os mestres, patrões do seu próprio negócio, gozando de um estatuto social elevado no meio das suas comunidades, os oficiais, considerados aptos para o ofício, uma vez terminada a aprendizagem, e os aprendizes. Entre os profissionais de então, em desaparecimento nos dias de hoje, havia abegões, cordoeiros, tanoeiros, tintureiros, albardeiros, seleiros, curtidores, tecelões, ferreiros, sapateiros, peleiros, ourives, pedreiros, canteiros, cutileiros e oleiros.

António Galopim de Carvalho | Retirado do Facebook | 04/09/2023

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