Devia morrer-se de outra maneira | José Gomes Ferreira, in Poeta Militante

Devia morrer-se de outra maneira.

Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.

Ou em nuvens.

Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol

a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos

os amigos mais íntimos com um cartão de convite

para o ritual do Grande Desfazer: “Fulano de tal comunica

a V. Exa. que vai transformar-se em nuvem hoje

às 9 horas. Traje de passeio”.

E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos

escuros, olhos de lua de cerimónia, viríamos todos assistir

a despedida.

Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio.

“Adeus! Adeus!”

E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,

numa lassidão de arrancar raízes…

(primeiro, os olhos… em seguida, os lábios… depois os cabelos… )

a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se

em fumo… tão leve… tão subtil… tão pólen…

como aquela nuvem além (vêem?) — nesta tarde de outono

ainda tocada por um vento de lábios azuis…

José Gomes Ferreira, in Poeta Militante

José Gomes Ferreira nasceu a 9 de Dezembro de 1900 e faleceu a 8 de Fev. de 1985.

O seu gosto pela poesia começa cedo. Estrea- se em 1918 com “Lírios do Monte”.

Após a formatura em direito, foi consul de Portugal na Noruega,  jornalista, e sómente em 1948 começa a sua produção mais intensa na Literatura; dedica- se à poesia,  escreve contos, crónicas e peças teatro.

Em 1961, depois de uma vasta obra publicada em prosa e poesia, recebe o Grande Prémio de SPA 

EM 1981 é considerado pelo Presidente Ramalho Eanes como Grande Oficial da Ordem de Santiago de Espada.

Em 1990 Jorge Sampaio,  presidente da República, descerra uma lápide em homenagem ao escritor, no prédio da Av. Rio de Janeiro, última morada do escritor e poeta.

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