União Europeia: à deriva entre duas ilusões, por Viriato Soromenho-Marques,10-06-2024, in DN

“Por outro lado, também não foram Governos populistas que arrastaram a UE para a perigosa subordinação à NATO e aos EUA, numa guerra, que segundo inquérito recente do Institute of Global Affairs, de Nova Iorque, conta com a oposição esmagadora de europeus e norte-americanos.”

Tudo indica que as forças do nacionalismo e populismo extremos terão um significativo ganho relativo de deputados no Parlamento Europeu (PE) em 2024. Contudo, já nas eleições de 2014, a mesma corrente política obteve triunfos substanciais. Basta recordar a vitória da Frente Nacional (hoje, Reagrupamento Nacional-RN) de Marine Le Pen, ou o sucesso de Nigel Farage, com o seu UKIP, que seria o instrumento fundamental para o Brexit em 2016.

Em 2014, sangrava ainda a crise do euro, disfarçada com a máscara oficial da “crise das dívidas soberanas”. Tratava-se, então, de uma clivagem aguda. mas na periferia europeia (Irlanda, Grécia, Portugal, Chipre, a banca espanhola…). A sua narrativa afundava-se numa linguagem económica e financeira errada e moralista: corrigir o pecado coletivo de povos inteiros que teriam vivido acima das suas posses.

As vitórias populistas, de 2014 e de 2024, pelo contrário, mudam a intensidade, mas também a geografia e o léxico do mal-estar europeu. O fulcro da doença da UE ataca hoje o núcleo dos países da Declaração Schuman de 1950, diria mesmo, o coração da velha Europa Carolíngia. O populismo já governa a Itália e a Holanda, ameaça uma Alemanha, que nunca foi tão desgovernada em democracia (incluo a República de Weimar), e caminha para uma vitória presidencial de Marine Le Pen em 2027, que só a doença ou a guerra poderão travar.

Para capitalizar os seus ganhos no PE, os partidos populistas deverão fundir os seus dois grupos parlamentares, respetivamente, o ID (Identidade e Democracia), onde pontifica o RN de Marine Le Pen, e o ECR, onde se destacam os Irmãos de Itália, da PM italiana Giorgia Meloni.

O PE será apenas mais uma plataforma para assaltar o centro do poder da UE, o Conselho Europeu, onde se definem alianças e hierarquias. Mas o que querem, afinal, os populistas? O seu discurso, nem sempre coerente, reclama mais devolução de soberania às nações, menos competências das instituições europeias, em especial da Comissão Europeia (CE). Querem mais autonomia dos Estados nas migrações e na política externa e de defesa. Dividem-se sobre o que fazer perante a guerra na Ucrânia, mas estão unidos na contestação das políticas ambientais e climáticas. A sua natureza, simultaneamente populista e nacionalista, não augura uma cooperação sistemática entre estas forças, à medida que assumam lugares de decisão nos respetivos países. Mais perigoso ainda é o seu desempenho em matéria de Direitos Humanos: chauvinismo, racismo, homofobia, fazem parte de uma agenda de (maus) costumes, que, aliás, é partilhada com alguma da velha direita.

Contudo, importa não cair na habitual falácia de tomar as causas pelos efeitos. Se a onda populista marca um novo ciclo político, no estado de crise permanente em que a UE entrou, quase desde o início do século, isso deve-se à incapacidade de democratas-cristãos, socialistas e liberais se manterem fiéis a um projeto europeu baseado na defesa da paz, do Estado Social e da proteção ambiental.

O neoliberalismo e a sua teologia de mercado intoxicaram a construção europeia, desde logo na incompetente arquitetura da Zona Euro, e depois na passividade cúmplice face à subida aguda da desigualdade e da pobreza nos países europeus. Por outro lado, também não foram Governos populistas que arrastaram a UE para a perigosa subordinação à NATO e aos EUA, numa guerra, que segundo inquérito recente do Institute of Global Affairs, de Nova Iorque, conta com a oposição esmagadora de europeus e norte-americanos.

Vejamos dois dos erros cruciais que alimentaram o populismo. Um dos primeiros países onde o extremismo despontou, com o partido Aurora Dourada, foi a Grécia. Então, sob o duplo peso da austeridade e de vagas de migrantes. Os Governos de Atenas e Roma gerem duas das mais sensíveis zonas de entrada de refugiados na Europa. É extraordinário verificar não só o total improviso e falta de solidariedade da UE, como a criminosa e irresponsável descoordenação entre os Estados-membros na prevenção das causas das migrações.

O aventureirismo do Reino Unido, e de outros países europeus, esteve patente, no apoio militar à infundada e brutal invasão norte-americana do Iraque, em 2003. As ondas de refugiados nessa altura criadas, aumentaram substancialmente com a intervenção “humanitária” da NATO contra o Governo de Kadhaffi, em 2011. A França de Sarkozy e o Reino Unido de Cameron foram dos mais ativos intervenientes na destruição de um dos mais prósperos países africanos, transformado hoje num santuário terrorista e numa fábrica de refugiados.

Pior ainda, a CE tinha conseguido em outubro de 2010, depois de anos de negociação com Tripoli, um amplo acordo que tornaria a Líbia num aliado da UE no combate às redes de migração ilegal e no acolhimento temporário de refugiados. Como se tal não bastasse, a França de Hollande e, uma vez mais Cameron, com o apoio de Hillary Clinton, querendo derrubar o Governo sírio a qualquer preço, sustentaram uma guerra civil, causadora de milhões de refugiados, que se abateram em particular sobre a Alemanha, em 2015. O PE aprovou há semanas um Pacto das Migrações e Asilo, mas ele não menciona a responsabilidade dos Estados-membros que agravaram unilateralmente esse problema humanitário, nem confere os meios necessários para o seu cabal financiamento.

A guerra da Ucrânia é outro expoente da negligência estratégica da UE na defesa da paz e boa vizinhança. O discurso dominante coloca na Rússia a responsabilidade total, mas quem tenha algum pudor intelectual não confundirá propaganda com objetividade. Desde 2008 que a UE e EUA sabiam das objeções fundamentais da Rússia contra a entrada de Kiev na NATO. William Burns, hoje chefe da CIA, então embaixador de Washington em Moscovo, alertou, em 2008, para a insensatez desse alargamento. Em 2010, foi eleito o presidente Yanukovich (em eleições universalmente reconhecidas como limpas), na base de uma plataforma que faria da Ucrânia um país que deveria ser ponte, e não fronteira, entre a NATO e a Rússia (em 2019, Zelensky seria eleito tendo por promessa principal a resolução negociada e pacífica dos diferendos com Moscovo…).

Em 2014, Yanukovich é derrubado insurrecionalmente em Kiev, precipitando-se uma guerra civil. Ficámos a saber, já depois da invasão de 2022, que a iniciativa russa de resolver diplomaticamente a contenda, através dos Acordos de Minsk I e II (em 2014 e 2015), foi encarada por Merkel e Hollande, em representação da UE, como uma oportunidade para enganar Putin, dando tempo para Kiev se transformar, como escreve John Mearsheimer, num membro de facto da NATO.

A grande ilusão dos partidos fundadores da UE, e que se consideram como donos da democracia genuína, é a de que a UE low cost do euro poderia ter futuro. A ilusão de que seria possível alimentar a grandiloquência retórica dos valores europeus, da Justiça Social com prosperidade económica e sustentabilidade ambiental, através de uma união monetária, sem união política, nem união orçamental e fiscal, desprovida de um sistema de paz pan-europeu.

A nova ilusão, dos nacionalismos populistas, é a de que poderemos regressar, tranquilamente, a uma mítica Europa das nações, sem nos cortarmos nos estilhaços que a implosão da atual estrutura da UE inevitavelmente provocaria. Contudo, a primeira e urgente prova de fogo da realidade, na nova paisagem política, será a de travar a escalada suicida para uma guerra frontal da UE com a Rússia.

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