Como vivi o 25 de Abril, Manuela Ramalho Eanes, in Diário de Notícias, 28-06-2024

O meu 25 de Abril começou muito antes do próprio 25 de Abril. Começou quando o meu marido e outros jovens militares sonhavam com um País livre, democrático, sem prisões por razões ideológicas, com políticos com integridade e ética, com pessoas sem fome, com escolas onde todos pudessem aprender a ser mulheres e homens participativos sem medo de falar, com uma justiça que não fosse manipulada pelos servos do regime, com cidadãos prontos a combater por um ideal de Pátria onde a liberdade, a justiça e a paz fossem uma verdade vivida por todos, sem medos. 

A luta por estes ideais era discutida na clandestinidade, num local previamente combinado. Sem medo. Com o idealismo próprio dos jovens que sabem que as utopias são apenas o que ainda não se realizou.

“De mãos dadas com os perigos” (citando Sophia de Mello Breyner), a seara do futuro começou a alastrar e a semente a crescer. E a liberdade, vivida na pureza dos corações daqueles jovens capitães, começou a crescer. 
“Liberdade que estais em mim, Santificado seja o vosso nome” (Miguel Torga). 

É verdade que todos estes ideais de liberdade, de dignidade para todos, de um Povo, de uma Nação de séculos, fraterna e solidária, eram também vividos por outros grupos: movimentos de estudantes, alguns políticos, geralmente no exílio ou na clandestinidade, grandes advogados e pessoas de outras profissões. 

Mas, como em qualquer desígnio, no mais importante Projecto da Vida, “o que importa é partir, não é chegar” (Miguel Torga). 

E foi o que aconteceu: na madrugada do 25 de Abril, um grupo maioritário de jovens capitães – com risco da própria vida – partiu de quase todas as unidades do País (grupo simbolizado por Salgueiro Maia), determinados a acabar com um regime caduco e dar a este Povo a liberdade e a dignidade. 

Entretanto, o meu marido, que participou em todas as reuniões preparatórias, foi mobilizado para Angola, para onde partiria em Janeiro de 1974, para a sua quinta Comissão de Serviço. E eu ia vivendo todas estas movimentações, num sentimento misto de ansiedade e esperança. 

E, no próprio dia 25 de Abril, só com o meu filho Manuel (com apenas dois anos), e preocupada com o meu trabalho na Obra Social do Ministério da Educação, continuei a enviar ao meu marido – como fazia todas as semanas – o correio com todas as informações, jornais e revistas, portuguesas e estrangeiras.

  1. Entretanto, chegavam-lhe as notícias da evolução dos acontecimentos, através do MFA de Angola. 
    Passado pouco tempo, o meu marido foi chamado para a Comissão Ad Hoc para a Comunicação Social, área que, naquele tempo – mais do que nunca –, precisava de uma pessoa íntegra e corajosa, não permeável a pressões. 

Mas, como acontece na maioria dos grandes Projectos sonhados com idealismo, há sempre quem os procure desvirtuar em proveito próprio. Começou, então, a haver algumas divergências e viveu-se um tempo de grande perturbação – o chamado PREC –, em relação ao qual ainda hoje há um grande desconhecimento. 

Foi efectivamente um tempo de grande dramatismo, conflitos entre o MFA e os Partidos, agitação nas ruas, medo, o cerco da Assembleia Constituinte (em Novembro de 1975), mandatos de captura em branco e, até, ameaças de rapto (como aconteceu connosco em relação ao nosso filho de três anos). 

Em Julho de 1975, houve uma grande manifestação, conhecida como a Manifestação da Alameda, que reuniu milhares de pessoas e é considerado um dos momentos decisivos no confronto político da altura. Nesta época tão conturbada tiveram papel de destaque alguns grandes poetas e escritores, que, com toda a coragem e força de alma, se manifestaram em defesa da liberdade e contra a ameaça de uma nova ditadura. Destaco, pela profunda amizade que nos unia e pela admiração que por eles tínhamos, dois grandes poetas: Natália Correia e Miguel Torga. E lembro, com todo o afecto, amizade e consideração, as palavras – como pedras – de Natália Correia, que Miguel Torga também partilhou: “O silêncio dos melhores é cúmplice do alarido dos piores”. 

Neste chamado Verão Quente, que vivi intensamente, como cidadã responsável, que ama o seu País, nunca perdi a fé e a esperança. Preparava-se, numa dádiva total e sem medo, a resposta a um País de novo amordaçado, com agitação social e conflitos constantes. 

E, como diz o grande poeta Sebastião da Gama: “é preciso cumprir o nosso destino de não ficar parados”. Assim, depois de um País libertado, mas perante as derivas ideológicas que se seguiram ao 25 de Abril, um grupo de militares íntegros, corajosos, com risco da própria vida, e com um profundo amor a esta “nesga de terra debruada de mar” (Miguel Torga), não desiste de um novo combate por uma Pátria mais justa e com dignidade para todos. E surge, então, como nova alvorada, o Grupo dos Nove, liderado ideologicamente por Melo Antunes, e no qual, a partir de Julho de 1975, o meu marido assumiu o papel de coordenador operacional, com o objectivo de instituir, em Portugal, uma democracia constitucional-pluralista. 

A resposta corajosa contra todos os que se preparavam para a tomada de poder e controlo das Forças Armadas, a 25 de Novembro de 1975, devolveu, assim, às Forças Armadas e aos Portugueses, a fidelidade ao grande propósito do 25 de Abril.

2. O 25 de Novembro foi o ponto de partida para a recuperação das promessas feitas originalmente pelo MFA, evitou uma guerra civil e uma nova ditadura e deu a democracia a um País que já conhecia a liberdade. 

Assim, logo a 26 de Novembro, a intervenção televisiva de Melo Antunes não só diz não a “sugestões” de dissoluções partidárias, nomeadamente a do PCP, como mostra “que a democracia implica a integração do adversário”. 

Com o segundo Pacto MFA-Partidos, assinado em Fevereiro de 1976 por todos os partidos, ficou estabelecido, por iniciativa militar, que o Conselho da Revolução se extinguiria, e as Forças Armadas voltariam à dependência directa do poder político, logo que fosse feita a primeira revisão constitucional e instituídos os novos órgãos que acolheriam as funções políticas até aí exercidas pela Instituição Militar. Este Pacto de Honra (cujos princípios foram incluídos na Constituição da República Portuguesa, que foi ratificada e entrou em vigor a 25 de Abril de 1976) – que algumas pessoas desconhecem – permitia que, a fazer-se, como era possível, a revisão constitucional, logo no início de 1981, o Conselho da Revolução se extinguiria imediatamente a seguir. Se assim não aconteceu, responsáveis, exclusivos, foram os partidos políticos que, só mais tarde, em 1982, se entenderam para rever a Constituição. 

Um País novo começou, uma nova esperança cresceu e acabaram os medos. Sem protagonismos, com verdade e com um País renascido, sem algemas, estes militares corajosos, que têm a Pátria no coração, e que são capazes de dar a vida por Ela, mesmo com sacrifício pessoal, são os nossos Heróis, simbolizados no 25 de Abril e no 25 de Novembro. 

E, como somos, também, um País de poetas, este País democrático é conhecido, em todo o mundo, como tendo nascido da Revolução dos Cravos. 

Todo este período de institucionalização da Democracia foi vivido por mim, pela minha família, com a esperança de ver Portugal ser um País mais justo, mais fraterno, mais solidário. Muito falta fazer, mas muito, também, já se fez. E a esperança num Futuro melhor guiará, sempre, as nossas vidas. 


Presidente Honorária do Instituto do Apoio à Criança
Escreve de acordo com a antiga ortografia

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