“Gente Séria” | de Hugo Mezena | por António Ganhão no Acrítico

Memórias da infância vividas num mundo rural há muito perdido num tempo em que os miúdos iam à catequese e acreditavam no poder da confissão. O registo mental dos pecados, convenientemente reduzido a escrito a fim de facilitar a confissão e atestar a sua sinceridade facilitando o perdão.

A ruralidade portuguesa revisitada numa primeira obra, o condão de intuir esse mundo estranho e remoto, a começar pelo nome da aldeia, com a sua ponte sobre o riacho e a violência rude que resulta do desconhecimento da civilidade urbana, mas sábia em conhecimento concreto das coisas da terra, da vida e da morte. Uma ruralidade tão dada a crenças. O invocar de um tempo em que as passagens de nível ceifavam vidas. O culto sagrado da morte, momento a que ninguém falta, nenhum familiar, por mais distante, por mais ausente que fosse, todos reunidos para prestar homenagem ao falecido. Era o luxo a que tinha direito. A compensação por ter morrido. Imagem perfeita da hipocrisia familiar.

O homem do campo, trabalhador primitivo da matéria em bruto, deus sem rosto, criador do universo, separando as trevas da luz e a terra da água, abrindo um rego. E o homem fica satisfeito com o seu trabalho. Não se pode atingir maior pureza. E esse homem deu lugar a outro homem, e depois a outro até os problemas com o rego da água começarem disseminando a morte.

A prosa de Hugo Mezena é seca, limpa e direta como refere Yvette Centeno na contracapa, uma narrativa colada à realidade sem perder a capacidade de respirar. Uma atenção sóbria aos pormenores, como as espinhas na boca zangada do senhor Júlio que desaparecem, mastigadas no meio dos insultos. Momentos que a memória distante insiste em reter. Capítulos curtos, pequenos apontamentos, definem o ritmo do romance no qual a vida parece fluir com alguma lentidão e a enumeração dos pecados acentua a banalidade a que estamos presos. Assegurados os recursos de escrita, Hugo Mezena afirma-se como um autor a seguir.

Quando saiu do seminário, o padre Cláudio dava muita importância aos gestos: o de consagrar o pão e o vinho, o de benzer. Eram gestos que se dirigiam à alma das pessoas. Que tinham a capacidade de lá entrar e pôr as coisas em ordem.

António Ganhão, Acrítico

GENTE SÉRIA é hoje (16 abril) livro do dia, na TSF. A escolha é de Carlos Vaz Marques.

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