De Natal por Cristina Carvalho

Agora que estamos quase, quase em cima do Natal terei, pois, de falar do Natal. Nem fazia sentido que falasse noutra coisa. Ou seja, eu poderia escrever sobre tudo menos sobre o Natal, mas enfim, compreendo que o deva fazer, que deva falar desta triste época que se aproxima para milhões de portugueses este ano mais pobres, eu incluída neste número imenso de gente que deixou de ter aquele dinheirinho com que contava, no final do ano, com que contava para tudo e para mais alguma coisa, por exemplo, para a compra de umas prendazecas e umas lembrançazecas que para mais não dava, depois de cumpridas certas obrigações de pagamentos disto e daquilo, amortizar a prestação não sei de quê, pagar o tal juro que se deve e depois, no fim, do que sobrar, comprar uns pacotes de farinha e uns ovos e açúcar e canela e limão e colar-se ao fogão ou ao forno, amassar, fritar, cozer, assar, bolo bom é pão de longe, bolo sem rei, sem rainha, sonhos de pesadelo, filhós de nada, pasteis de tudo, pasteis de desejos, pasteis de natal e, remexido o fundo aos bolsos, resta ainda uma moeda para aquela bola de vidro de verde e oiro pintada com que vamos enfeitar a porta e também as entradas de todas as portas que existem na nossa imaginação, uma abre para dentro, outra abre para fora, tudo isto sem dinheiro e olha a menina e olha o menino, coisas lindas de se ver, mais os velhotes lá longe, a neve a cair lá fora, o vento que varre o chão, a cidade iluminada, a vida como é costume, este ano não há mais, ai que eu sou tão controlada, ai que eu sou tão comedida, tão pacata e bem disposta, deixa lá, hão-de vir dias melhores, aguenta-te nas canetas, o melhor é estar calado, prefiro não agitar, não se tem mais, tem-se menos, a garrafita de azeite a escorrer e a pingar para este pobre país poder temperar a couvinha ou temperar as batatas, que bacalhau já nem falo.

Mas, prosseguindo nas considerações natalícias,

lá vem, finalmente, o senhor Papa Joseph Ratzinger dizer o que toda a gente já sabia há muito tempo e ele próprio também sabia. Sabia e sabe. Sabíamos e sabemos. Há quem não saiba! Isso há! Mas isto do dia de natal não ser dia de natal é assunto velho, tão velho que já nem tem mais explicações. Que tudo é simbolismo e imagética, também já sabemos. Que o sol no seu solstício longe, muito longe, dificilmente se avista de tão pequenino, mas que pode ser o menino Jesus, isso pode! Que o sapatinho é a Terra, isso é! Pode ser! Que a lareira é o fogo, claro que é! Claro! E tudo são imagens, linguagens e simbolismos com um qualquer fundamento. Contudo, ao certo, ao certo, ninguém sabe mesmo nada! Até ver.

Agora, estas informações que já toda – ou quase toda – a gente sabe, é uma coisa! Outra coisa, é vir dizer que afinal não há burro nem vaca nem nada disso! Que nunca houve. Que, provavelmente, o menino Jesus nasceu numa altura de grande calor, talvez na praia, talvez no monte…

E todas essas figuras, os reis magos, os pastorinhos, os burrinhos, as vaquinhas, o bafo quente a aquecer, o verde musgo a enfeitar, ainda a estrela polar, a estreita cama de palha, os reis magos e suas prendas, etc, etc, tudo isto vai abaixo, tudo, tudo engolido pelas areias de um deserto que afinal nunca existiu como morada de berço do Redentor.

Uma pessoa também tem de engolir isto tudo! Engolir, por exemplo, a figura do senhor Papa Ratzinger, o ano passado, a acender todas as luzes da árvore de natal gigante em Gubbio, accionando apenas e com um simples toque o controlo remoto das luzes através do seu tabletde discutível marca, sentado lá na secretária no Vaticano, muito quentinho, com pantufas eléctricas, de certeza absoluta!

Por mim, fico muito contente de saber que a informática já chegou tão longe! E a presença do burro e da vaca não me fazia confusão nenhuma! Era o ar condicionado possível da época!

Cristina Carvalho

Rómulo, conhecedor profundo da sua natureza humana por António Ganhão

Existem homens que são maiores do que o seu tempo e por isso lhes foi reservado a eternidade. Permanecem, lá onde os podemos rever: na sua obra, na sua integridade e no seu exemplo de vida. “…não existe a ausência nem a distância. Nem saudade. Existe vida.” Estão vivos na nossa memória e na forma como entendemos o mundo, a história, a ciência e a arte. Na humanidade acontecem homens assim, mas são raros.

A Rómulo de Carvalho aconteceu-lhe ser um desses homens, “…foi um eclético da ciência. Foi, realmente, um Homem do Renascimento e bem ficou demonstrado através de todas as inúmeras e diversificadas atividades e que, para mim, constituem uma interrogação, uma grande interrogação: como é que uma pessoa desenvolve, ainda que num longo percurso de

vida, tanta, tanta produção com tão diferentes interesses que vão desde a sua paixão – o dedicado ensino – à divulgação da ciência, à investigação da História de Portugal, à fotografia, à construção de móveis de madeira, à poesia, à escrita de dezenas e dezenas de obras.”

Esta não é uma biografia escrita de uma forma convencional, um conjunto de eventos enumerados por ordem cronológica ou alinhados pela sua relevância. Um objecto de estudo. Esta é uma biografia escrita por quem arrisca, quem arrisca tudo e muito, sem perder a noção do lado simples da vida: “Eu percebo-o. Não porque tenha o mesmo pensamento, mas porque o percebo. Apenas.”

É esse entendimento que Cristina Carvalho nos transmite neste livro sobre Rómulo de Carvalho, também seu pai. Usando todos os seus recursos de ficcionista ousa, de forma destemida, construir a imagem do homem que muito admirou e muito amou. Fá-lo, por vezes, em registo de miniconto, como se um ritmo próprio (e misterioso) lhe ditasse a ordem pela qual esses eventos lhe surgem na memória.

“O seu velho gato solitário pede-lhe para abrir uma certa porta que dá para um certo sítio ao ar livre. E ele abre. Então, o seu velho gato solitário desliza por entre portas e senta-se no seu canto preferido. Agora está, novamente, deitado. E agora endireita-se e torna a sentar-se com expressão atenta. Observa qualquer coisa invisível ao olhar do homem e o homem observa o seu observar. Fixou um determinado ponto e não há nada, nada neste mundo que faça desviar a sua severa atenção. Os olhos semicerrados ainda percebem movimentos por mais rasteiros e silenciosos que sejam. O homem continua a observá-lo à distância. O ar parou ali à volta. O momento é de alto risco, inequívoco. Mas nada acontece. O gato já não consegue dar saltos elásticos nem dilacerar um pequenino corpo de rato numa fração de segundo, numa gloriosa pirueta.

Este velho gato solitário percebeu a sua própria finitude. Tal como ele, o homem, a percebeu há muito tempo.

Isto seria se Rómulo tivesse tido um gato …”

Tudo parece estar contido neste trecho que, em jeito de enigma, se abre sobre a personalidade de Rómulo de Carvalho. Um homem que abraçava com os olhos e ao mesmo tempo se mantinha distante; que se expressava com uma fina ironia, elegante e sedutora, mas que nunca magoa; que aparentava uma certa tristeza, um desgosto da humanidade e ao mesmo tempo nos deixou a “luz doce e caótica” da sua poesia.

De tudo isso nos fala Cristina Carvalho, com a consciência assumida de que “…não posso descrever de outro modo essa personalidade que foi Rómulo. Esta personagem tão carente, tão pedinte de amor, grito contido, sublimado e disfarçado, conhecedor profundo da sua natureza humana que o espantou até ao fim, da natureza de todos os outros sem exceção, que revelou nos poemas, no dia a dia, pelos caminhos, pelas ruas, pela cidade, a dar aulas, em conversas, na alegria e na tristeza, toda essa inteligência e humildade ao serviço de quem a quis conhecer e receber.”

É desses momentos dispersos que nos fala este livro. Rómulo desliza nestas páginas com a elegância de um gato, esses eternos e indomáveis príncipes que habitam entre nós, curiosos das coisas da vida, observadores atentos desta humanidade com quem, em sabedoria, aceitaram partilhar as suas vidas. Não se encontram aqui respostas definitivas, tão somente a luz doce que nos permite conhecer as inquietações que atormentaram o poeta. Tudo o resto, o que não está, pertence à vida de cada um e só ao próprio interessa. Ao poeta fica-se-lhe a dever uma resposta:

Quem há-de abrir a porta ao gato

quando eu morrer?

António Ganhão

 

Entrevista a Raul Solnado

Partiu fisicamente o talvez maior entre os grandes. Raul Solnado. Dia 8 de Agosto devia passar a Dia Nacional do Humor.

Tenho, como coordenador do PNEThumor a honra de ELE me ter concedido uma entrevista para o site e que hoje opto por re-publicar.
Que não se veja como aproveitamento o que é HOMENAGEM.

João Moreira de Sá

Quem mais apropriado para “inaugurar” as nossas entrevistas que um dos maiores mestres do humor? O PNEThumor teve o prazer e a honra de conversar com Raul Solnado sobre O Humor. Palavras para beber.

O humor é, acima de tudo, para fazer rir ou deve também fazer pensar?
O humor é acima de muitas coisas, criticar de mansinho ou pôr em ridículo o que, ou quem, assim merece. Ainda existe o riso ou sorriso, que apenas podem funcionar como terapia.


Pode dizer-se que , à semelhança da música, há um humor de intervenção?

Há sim, mas não propriamente da música. Nas canções de intervenção, o que vale são as letras.


O humor é mesmo “uma disciplina muito séria”?

O historiador George Minois, no se livro “ História do Riso”, escreve que o riso é um assunto demasiado sério, para ser deixado aos cómicos.


A arte de fazer rir é o parente pobre das artes, do teatro, da escrita, do cinema…?

Num papiro do século III podemos ler: “ Depois, de o deus rir, nasceram os sete deuses que governaram o mundo… Quando ele rompeu às gargalhadas, surgiu a luz (…) Gargalhou segunda vez, e tudo foram águas. À terceira gargalhada, apareceu Hermes; à quarta, a geração; à quinta, o destino, à sexta, o tempo. Depois, antes do sétimo riso, o deus inspirou fortemente, mas tanto riu que até chorou, e das suas lágrimas, nasceu a alma.


Quando o Raul está em palco, quem é que está em palco?

Ou eu próprio, ou o personagem. Não autorizamos a presença de mais ninguém, à excepção de alguns actores que fazem parte do espectáculo. Cenário também. E chega.


Qual é a sensação de dominar as emoções e reacções de uma plateia sem abrir a boca, fazendo uso apenas da expressão facial, no que o Raul é mestre?

No dia em que eu começasse a empreender nessas minudências, nunca mais podia pensar em pisar um palco. Nem sequer olhar para a fotografia da porta de um teatro.


Concorda com Vítor Pavão dos Santos que, independentemente do que faça, o público espera sempre de si “rir com ele numa nova variação da Guerra de 1908”?

Durante alguns anos fiquei refém desse personagem, contador de histórias. Há dezenas de anos que isso não acontece. Foi para mim um sufoco.


O mundo do teatro, do humor, do espectáculo, dos media a eles associados, são uma guerra?

Nada disso. É natural que cada um queira tirar, o melhor possível na sua própria carreira. É completamente legítimo.


Hoje é preciso fazer mais telefonemas para entrar para a guerra?

Nããããão Na guerra, a comunicação hoje não é rápida: é veloz. Todos os beligerantes falam através de mísseis.


No teatro, e no humor em particular, há corporativismo, na vertente “amiguismo”?

Penso que é muito raro. Tanto o talento como a falta de talento, são demasiadamente visíveis. Além disso, hoje os castings são cada vez mais exigentes. Pouca gente brinca com o serviço.


Hoje em dia valorizam-se mais os nomes que os talentos? (ou “o panorama” não mudou muito?)

Mudou. Os dirigentes da televisão, de há uns tempos para cá, apostam nas audiências de telenovelas. Os actores participantes dividem-se em vários grupos: Os actores que têm uma carreira sólida, com muito estudo e muita prática e a maior parte dos jovens que chegam e apenas fazem uma pequena ideia do que significa representar. Estes, como são fotogénicos, são um apetite para as revistas do estilo. E alguns ficam famosos. Mas a verdade é cruel: o publico, que às vezes assiste a novelas, já com alguns anos, descobre que há já muito tempo, a maior parte desses jovens, ex famosos, desapareceram do ecran para sempre(?). Foram descartados. Os grandes actores ou os actores menos dotados mas com experiência, vão ficando sempre


Porque é que o seu programa-projecto para televisão com as Produções Fictícias não se concretizou?

Os elementos que na altura dirigiam a RTP, devem ter feito confusão com o meu nome. Foi apenas isso.


Há demasiados panarícios e bicos de papagaio a mandar na cultura, nas autarquias, nas programações, nas instituições?

É verdade. O país está completamente infestado e essa razão será a mais importante, para que muitas vezes os portugueses cheguem aos limites da indignação..


Concorda com o Herman quando diz que em Portugal tratamos muito mal as nossas Vedetas, no sentido “histórico” do termo?

O Herman José, desta vez exagerou um pouco.


Somos um país de memória curta?

A memória curta é praticamente um fenómeno generalizado. Temos através da Net, o mundo completamente escancarado. Podemos ver tudo, podemos ler tudo, podemos saber tudo. A comunicação social , desaba em cima nós a cada minuto tudo o que é acontecimento.

Não há memória que aguente aquela tempestade. E o que é grave, é que muitas vezes retemos as futilidades e não fixamos as noticias que mais nos podem interessar.


Sabemos fazer-nos o favor de ser felizes ou nem tentamos?

A felicidade é uma emoção pontual e quando a recebemos, temos que segura-la até aos limites.


O que é que o fará voltar a subir a um palco? Uma peça, um texto, que o desafie? 

Subir três pequenos degraus.

Entrevista realizada por João Moreira de Sá

Tomas Gösta Tranströmer por Mário Rufino

Tomas Gösta Tranströmer, nascido em Estocolmo em 1931, é poeta e tradutor. A sua poesia está traduzida em mais de 60 línguas. É um dos mais importantes escritores escandinavos e europeus desde a 2ª Guerra Mundial. Ganhou o Prémio Nobel da Literatura em 2011

Tomas Tranströmer é, sobretudo, um homem formado pelas suas lembranças.

“As minhas lembranças observam-me” é um exercício de memória de um homem que viria a ser o escritor que é hoje.

O autor conta neste livro a importância de pequenos acontecimentos na construção da sua personalidade. Os caminhos que não foram percorridos são a sombra das suas escolhas.

As histórias que compõem esta obra estão divididas por consideráveis elipses. Apesar da linearidade cronológica, Tomas Tranströmer aplicou mais atenção à importância dos acontecimentos do que a preencher e a ordenar a cronologia com diversos factos com pouco efeito na sua formação como indivíduo. É a importância dos acontecimentos que marca o tempo da narrativa. Mas a relação do autor com as suas lembranças não é de todo pacífica. Ele desconfia e avisa que o próprio tempo conseguiu alterar as suas memórias.

“As primeiras vivências são, na sua maior parte, inacessíveis. Histórias recontadas, recordações de recordações, reconstituições que assentam na erupção súbita de um estado de espírito.” Pág. 11

Ele tenta, tanto quanto possível, limitar-se às lembranças de que não duvida da autenticidade.

Os rostos das pessoas que não vê há muitos anos mantêm-se inalteráveis apesar do tempo passado. Os factos alteram-se, de forma radical ou não, mas as pessoas, tal qual ele as recorda, mantêm-se sempre iguais apesar do inevitável envelhecimento.

“Já os meus professores, «os velhos», como nós lhes chamávamos, mantêm-se velhos na minha memória, embora os mais velhos tivessem então a mesma idade que eu tenho agora, no momento em que escrevo estas memórias. Sentimo-nos sempre mais novos do que somos. Trago em mim os meus rostos anteriores, como a árvore tem os anéis da sua idade. O que eu sou é a soma de todos esses rostos. O espelho só vê o meu rosto mais recente, mas eu conheço todos os anteriores” Pág. 55

O autor destaca momentos marcantes que vão desde o divórcio dos pais, numa época em que era raro acontecer um divórcio, passando pela sua colecção de insectos (é o mais famoso coleccionador sueco de insectos. Tem uma exposição no “Swedish Museum of Natural History”) até a um erro ortográfico. Há, contudo, um momento ainda mais importante na sua vida: o aparecimento da angústia que o irá acompanhar ao longo da vida.

“Talvez a minha experiência mais importante. Contudo, um dia chegou ao fim. Pensei que se tratava do Inferno, mas era o Purgatório” Pág.69

As memórias presentes em “As minhas lembranças observam-me” terminam logo após a adolescência. A redacção do texto acaba quando Tranströmer, já com cerca de sessenta anos, sofre um AVC.

“As minhas lembranças observam-me” são complementadas por os primeiros poemas de Tranströmer e por um posfácio de Pedro Mexia.

Uma análise mais aprofundada sobre o livro depende muito do ângulo de observação. Pode-se considerar que este livro explica, de alguma forma, características inerentes à poesia de Tranströmer (postura típica do “New Historicism”), ou pode ser visto pelo que é isoladamente e sem ligações à obra global do Prémio Nobel (posição típica do New Criticism). A partir do momento em que o leitor deixa para plano secundário a relevância deste livro na obra de Tranströmer, consegue usufruir, sem obstáculos, das características específicas da edição, pela Porto Editora, de “As minhas lembranças observam-me”: O texto, as ilustrações e a própria encadernação.

Tomas Tranströmer é reconhecido pela Academia Sueca devido, essencialmente, à sua poesia, mas fica a ideia de que o autor conseguiria, também, o nível de excelência na prosa.

Mário Rufino

Se voltasse a encarnar, Jesus seria um Gigabit por Luís Carmelo

A imaginação socialmente legitimada foi um dos alicerces da modernidade (de Hume a Kant, a ideia evoluiu meteoricamente). A imaginação passou a ser sobretudo um dispositivo de produção ficcional que visa, a partir da tabula rasa (Damásio refere-se à mente como “contadora de histórias”), a possibilidade de tornar real dados sondados pelo sujeito. É este o alicerce do artista – que tem acesso a visões de completude ou de totalidade – sonhado pelos românticos alemães, sobretudo pelo chamado Círculo de Jena.

Acontece, no entanto, que a estética no seu devir idealista só se viria a enunciar, pela primeira vez, ao longo de setecentos, porque antes haviam já sido criadas condições para tal. A intemporalidade mitológica deu lugar à transcendência e esta acabaria por dar lugar ao sujeito moderno criador e questionador. Entre as duas últimas etapas, o gnosticismo ocupou uma posição importante e é curioso verificar que as suas diversas proveniências têm duas características essenciais: uma (aparentemente datada) que remete para a dimensão salvífica e uma outra que remete para a aceitação da gnose como conhecimento dos mistérios reservados apenas a uma elite.

Foi a partir desta disposição superadora e, também, de busca do inexplicável que, mais de milénio e meio depois do clímax gnóstico, em pleno Iluminismo, foi possível teorizar e crer na arte, na literatura e na estética, tal como hoje ainda as entendemos. É evidente que a pressuposição dos sentidos e da imaginação como vias ligadas a faculdades superiores do homem completou o quadro e legitimou as funções da arte e da estética no mundo moderno. É nessa medida que a dimensão criativa do sujeito é realçada, sendo-lhe atribuído o crédito de uma espécie de gnose exclusiva, superior e irrespondível (um crédito de que a noção “génio” de Kant foi apenas o prenúncio).

O mundo contemporâneo viu esta ideia (meio) sacralizada do artista e do escritor refluir em direcção a nichos sem grande visibilidade. A espectacularização do mundo criou, nas últimas décadas, uma espécie de novo Apocalipse (uma visão de deus, agora sem qualquer deus) feito de terminais, tabletes, bits e imagens, de acordo com o primado da ‘comunicação pela comunicação’. A literatura vive hoje no meio deste feérico espectáculo e tenta sobreviver nas brasas do churrasco – ou do mercado – que coloca à venda, só em papel (em Portugal), uns quarenta e tal livros por dia. O público deixou de andar atrás do escritor (há três milénios, com outras mediações, chamar-lhe-íamos profeta), porque a gnose que hoje mais o encanta, diverte e comove passou para o campo de uma renovada transfiguração: a hipnose digital. Jesus, se voltasse a encarnar, seria um Gigabit. Só assim conseguiria passar a sua mensagem.

Luís Carmelo