Citando Gabriela Ruivo Trindade

Uma Outra Voz

Um completo estranho, o meu corpo. Às vezes parece-me que tenta falar comigo, mas não entendo patavina do que diz. Chego a acreditar que me roubaram o antigo corpo ou o deitei fora. Talvez o tenha despido, como quem arranca o pijama de manhã, e me tenha enfiado noutro. Usado, ainda por cima. Gasto, velho e com defeito.

O ventre é o meu pólo sul. Para lá não existe nada. Ou talvez devesse dizer: o ventre é uma espécie de fim do mundo. Uma falha geológica gigantesca que separasse uma península do continente e a lançasse, errante, no coração do oceano. Eu sou o que sobra desse continente desmembrado; o resto partiu, levado na corrente marítima, não sei para onde.

O resto. As pernas, os pés e o baixo-ventre; tudo o que fica abaixo do umbigo. Aliás, se não visse todos os dias as minhas pernas, pensaria que mas tinham amputado. Se não visse o tubo da algália, a sua extremidade a desembocar naquele saco em que se vai acumulando o líquido amarelo que (dizem) é a minha urina; se a enfermeira não viesse todos os dias baixar-me as calças em movimentos lentos e pacientes, abrir-me a fralda, retirar cuidadosamente o tubo de borracha em volta do pénis, depois virar-me de lado com a ajuda de dois auxiliares e lavar-me o rabo como se fosse um bebé, juraria que não tenho sexo, nem cu; que nem sequer cago, pois nem sinto a merda agarrada às nádegas, aos pêlos; eu deitado em cima da minha própria merda, um bebé de vinte e quatro anos. Queria ao menos vomitar o nojo. Mas nem isso. Arrancaram-me as tripas, os pulmões, o coração. Talvez só me reste o cérebro.

Uma Outra Voz, Gabriela Ruivo Trindade, prémio Leya 2013.