Depois do terceiro assalto, o taxista comprou uma arma | Mauro Castro

Depois do terceiro assalto, o taxista comprou uma arma. Sua mulher entrou em pânico. O marido sempre foi um homem pacato, pai zeloso, temente a Deus, nunca se meteu em confusão. Mas a arma foi comprada, um 38 engasgado com seis balas tornou-se parte do assento do motorista, sob o estofamento, camuflado, invisível, mas à mão. Ninguém nunca soube da arma além da esposa, o taxista não era homem de contar vantagem, gargantear, ele mesmo procurava esquecer o revólver, nunca tirou-o do lugar onde foi colocado, não manuseava a arma, tinha uma espécie de respeito, repulsa, quase nojo, nunca deixou que outro sentasse ao volante, o banco daquele táxi guardava o seu segredo.

O homem anunciou o assalto já espetando uma faca na carne do taxista, penetrando alguns milímetros, pra não deixar dúvida, descarga de adrenalina, berreiro no ouvido, vou te matar filho da puta, escuridão, periferia, toca sem olhar pra mim, aperta a faca, o aço na costela, o medo no osso, entra no beco, sem saída, passa a grana, passa tudo, quero dinheiro, miserável, carteira com a grana, tudo, pode pegar, te mato, mãos no volante mané, passa o celular, não tenho, não uso telefone, tem mais dinheiro aqui, a mensalidade da escola, no porta-luvas, otário, perdeu, pega tudo, leva, gritaria no meio da noite, cachorro latindo, o beco deserto, chão batido, longe de tudo, de socorro, o bandido saíndo, ainda gritando, jurando de morte, o dinheiro, a mensalidade da creche no bolso do vagabundo, a mão do taxista sob o banco, achando a coronha da arma, empoeirada, áspera, anatômica, o bandido correndo em direção ao mato, a escuridão, o primeiro disparado, o segundo, o vagabundo caindo, levantando em direção ao mato, mais um tiro, outro, só a escuridão, cachorrada latindo, mais um tiro, o bandido sumido, flashes de fogo, estampidos, o gatilho sendo apertado a esmo, até não surtir mais efeito, o cheiro de pólvora na noite, a arma quente, descarregada, silêncio, nada de bandido, nem mais os cachorros, nada, a escuridão abafando tudo naquele beco sem saída, o vazio, a arma jogada no arroio, o taxímetro desligado, o rádio desligado, a mente quieta, o caminho de casa, o banho mais demorado, o sono, silêncio.

Esquecido em um quarto de paredes nuas, janela para um muro, tudo foi a tanto tempo, quando tinha táxi, quando tinha colegas, quando tinha uma esposa, retalhos das lembranças mais antigas, as que sobraram, que o Alzheimer não lhe arrancou por completo. Nem mesmo a enfermeira que lhe trocou a última fralda ele lembra. Certo apenas as cruzadinhas, Coquetel, que alguém lhe traz uma vez por mês, quando vem pagar o asilo, o filho, o neto, foi tudo a tanto tempo, não reconhece mais ninguém. Palavras cruzadas, apenas as cruzadinhas.

Quem tira a vida de outro, horizontal, nove letras: assassino.

Mauro Castro

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