O descobrimento de Portugal | Fernanda Câncio | in Diário de Notícias

25 Junho 2018

O debate sobre o nome do museu “Das Descobertas” descobre-nos um país obstinado no negacionismo.

Em memória dos milhares de judeus vítimas da intolerância e do fanatismo religioso assassinados no massacre iniciado a 19 de abril de 1506 neste largo”. A frase lê-se numa estrela de David recortada em pedra, monumento inaugurado a 23 de abril de 2008, no Largo de São Domingos, Lisboa. O erigir deste memorial era uma antiga aspiração da Comunidade Israelita Lisboeta, cuja presidente, Esther Mucznik, dois anos antes, no mesmo largo e na celebração do quinto centenário do pogrom que matou entre dois mil e quatro mil “cristãos novos”, lamentava a inexistência, na cidade, de “um único marco público relacionado com a perseguição dos judeus”. Políticos identificáveis, nesse assinalar de um acontecimento terrível de que a maioria dos portugueses nunca teria ouvido falar, só três deputados do BE, incluindo Francisco Louçã, que disse ao DN ter ido “fazer um encontro com a história” e o ex Provedor e ex ministro da Justiça, Menéres Pimentel. Também referida nas notícias foi a comparência do então diretor do Público, hoje “publisher” do Observador, José Manuel Fernandes, e da filósofa Maria Filomena Molder, que, questionada pelo DN sobre a razão pela qual estaria ali tão pouca gente, falou da “supressão da memória como um problema muito português.”

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O restaurante carteirista e outras fábulas da demissão do Estado | Fernanda Câncio in Jornal Diário de Notícias

Restaurante assalta turistas com pratos de 250 euros; Meo cobra acima da própria tabela, diz a clientes que não podem rescindir ao balcão e impõe contratos por SMS. Quem diria que há leis?

Foi grande a comoção com a notícia do restaurante da Baixa de Lisboa que assalta turistas com preços absurdos, do tipo 250 euros por um misto de carnes. E maior ainda o escândalo ante a afirmação pelas autoridades – a ASAE, no caso – de nada poderem fazer, alegando que os preços absurdos constam da carta e portanto os enganados são-no por não terem a diligência mínima de a perscrutar de fio a pavio, ou questionar os empregados sobre o valor de cada prato.

Grande coincidência, a de tanto burro ir ao mesmo restaurante. Ou quiçá o problema não resida nos clientes. É que se não está em causa a liberdade de qualquer serviço (não essencial) cobrar valores disparatados, a questão é se isso fica ou não claro para o consumidor. Ora ao percorrer a lista do restaurante constata-se que a generalidade dos preços é normal para um estabelecimento médio; os valores desproporcionados estão numa página recôndita, como “especiais”. Ou seja: a lista, como o aspeto do lugar, induz o cliente a concluir que não pagará mais de x; quando, como afiançam testemunhos publicados online, os empregados sugerem os “especiais”, não há motivo para achar que vai pagar o décuplo do preçário geral.

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Fomos sempre tão amigos dos pretinhos | FERNANDA CÂNCIO | in Diário de Notícias

17/04/2017 

A piedosa fábula do “colonialismo português de rosto humano” é uma falsidade histórica. Ver Marcelo repeti-la no lugar do crime é uma vergonha.

odo o indígena válido das colónias portuguesas fica sujeito, por esta lei, à obrigação moral e legal de, por meio de trabalho, prover ao seu sustento e de melhorar sucessivamente a sua condição social.” Este é o artigo primeiro do Regulamento Geral do Trabalho dos Indígenas nas Colónias Portuguesas, de 1914. O segundo esclarece que o indígena que não trabalhe sem para isso ter motivo “de força maior” será condenado (é mesmo esta a expressão) a trabalho.

É certo que se estabelece que este deve ser pago e nunca “superior às suas forças”, mas igualmente se diz que os indígenas não podem despedir-se e que se fugirem serão capturados e castigados – condenados a mais trabalho. E, no artigo 47.º, lê-se: “Pelo facto do contrato celebrado perante a autoridade pública, os patrões recebem os poderes indispensáveis para, quando e enquanto a autoridade o não possa fazer por si própria, assegurarem o cumprimento das obrigações aceites pelos serviçais ou a repressão legítima da falta desse cumprimento. No exercício desse poder ser-lhes-á permitido prender os serviçais que (…) se recusarem a trabalhar (…), [assim como] evitar que cometam faltas e empregar os meios preventivos necessários para os desviar da embriaguez, do jogo, e de quaisquer vícios e maus costumes que lhes possam causar grave dano físico ou moral.” Esta “necessidade” é explicada no preâmbulo do decreto: “Preciso é (…) pôr nas mãos dos patrões direitos sem os quais não é possível manter a disciplina.” Para tal, é-lhes permitido terem uma milícia nas suas propriedades. E o regulamento específico para Moçambique, do ano anterior, prevê que usem “os meios possíveis” para “melhorar a educação” aos indígenas, “corrigindo-os moderadamente, como se eles fossem menores”. Prescreve também o luxo de um dia de repouso semanal, mas para ser gozado no local de trabalho, do qual o “serviçal” só se pode ausentar por quatro horas. Ainda assim, estes regulamentos falam de contratos “livres” e “voluntários” e proíbem grilhetas e algemas – não fosse alguém confundir o regime com o da escravatura.

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Do Rato e dos homens por FERNANDA CÂNCIO in “Diário de Notícias”

Não fossem os portugueses ainda com emprego ficar mesmerizados com os recibos do ordenado de janeiro, o PS encenou, esta terça-feira, um grandioso espetáculo no Rato. Coisa shakespeariana: um rei fraco rodeado de lugares-tenentes aos gritos de deslealdade e conspiração ante o anúncio de uma pretensão ao trono, uma reunião à porta fechada e um final em que o monarca, depois de chamar e deixar chamar tudo a quem possa pô-lo em causa, abraça o concorrente que não chega a sê-lo e assume o compromisso de com ele trabalhar em prol da união do reino.

Em Shakespeare, como em geral, o pano nunca cai depois de uma cena destas. É só o princípio da intriga e de sangrentas congeminações que inevitavelmente nos revelam a natureza das personagens e da sua relação com o poder. E que sabemos nós das personagens? Comecemos pelo rei. Há um ano e meio no trono, não só tarda em mostrar o seu projeto e valor no campo de batalha como se rodeia de uma corte apagada e sem chama que, na noite de terça, mostrou também (com raras exceções, como a de Zorrinho) ser vil. É um monarca que não hesita em recorrer ao insulto, à ameaça e a insinuações de conspiração – chama desleais aos que com ele não concordam e que o consideram inadequado, fala ou deixa que por ele falem de “limpar o partido e o grupo parlamentar” (atribuído pela SIC, na noite de terça, à direção socialista), acusa quem o defronta de “querer regressar ao passado”, dando alento aos boatos que dizem ser o rei anterior a comandar, do exílio, a sublevação. Para, numa entrevista na noite seguinte, fazer de magnânimo e amnésico, cumulando de elogios o adversário da noite transata.

Quanto a este, alcaide valoroso e respeitado, com legítimas aspirações ao trono, renunciou a bater-se por ele quando ficou livre. Desde a coroação, porém, não perde uma ocasião de demonstrar o seu desagrado e até desprezo pelo ora rei. Era, pois, previsível que aglutinasse a esperança dos que consideram estar o reino mal dirigido e veem nele a esperança da vitória contra o inimigo e a salvação do povo. Como explicar, pois, que na famosa noite, quando todos esperavam que se perfilasse como candidato ao trono – o que só pode decorrer do facto de o ter confirmado aos próximos – se tenha ficado? Faltou-lhe a coragem, as ganas? Percebeu que não estava garantida a vitória e só quer arriscar não arriscando? Habituou-se ao conforto de criticar, na sua cátedra da SIC, sem correr o risco de provar que sabe e quer fazer melhor? Sentiu-se traído, na hora H, por aqueles de quem esperava apoio? Ou, como alguns aventam, recuou para tomar balanço, fazendo do recuo (o acordo da união) repto? Seja qual for a resposta certa (senão todas), sabemos, como sabem os protagonistas, isto: que na noite de terça algo se partiu no PS, e não há pantomina de união que o disfarce. O trono pode ter sido segurado, mas o reino está longe de seguro.

http://www.dn.pt/inicio/opiniao/interior.aspx?content_id=3028285&seccao=Fernanda+C%E2ncio&tag=Opini%E3o+-+Em+Foco … (FONTE)