Um Ocidente Sequestrado? — Por quem? | Carlos Matos Gomes

Milan Kundera é um escritor estimulante, mais do que romancista ele é um pensador. Ele justifica a afirmação de Aristóteles de que se aprende mais sobre o homem e o mundo com a poesia, a ficção do que com os relatos históricos. Em 1983, um ano antes da edição do muito conhecido romance «A Insustentável Leveza do Ser», Kundera publicou o ensaio «Um Ocidente sequestrado — o rapto da Europa», que foi agora reeditado em Espanha e comentado para El País por Monika Zgustova, escritora e tradutora nascida na antiga Checoslováquia.

O texto de Monika Zgustova no El País é para mim um excelente ponto de partida para entrar no pensamento de uma elite eslava e germânica sobre a Europa e que ajuda a analisar a racionalidade ou a irracionalidade das decisões dos governos europeus nesta guerra da Ucrânia. Kundera é, como todos nós, ele e as circunstâncias. Ele é checo saíra do seu país por discordâncias políticas, na sequência da invasão da URSS. No artigo de 1983 ele polariza duas Europas, das duas capitais do cristianismo, Roma e Constantinopla. Haveria assim duas Europas, Moscovo e Paris (onde ele se exilou e Roma deixou de contar após a queda do império romano) e a tragédia europeia resultaria desta divisão e do facto de os habitantes do Oeste da Europa , a Europa Central (Polónia, Checoslováquia, Hungria) se terem visto de um dia para o outro surpreendidos por serem do Leste. E ainda que um sinal da identidade da Europa central seriam as revoltas que estes países organizarão contra os soviéticos na segunda metade do século XX: a revolta húngara de 1956, a Primavera de Praga de 1968 e as sublevações polacas que se sucediam uma ou mais vezes em cada década. Segundo Kundera terá sido o império russo que fez a Europa Central perdesse a sua identidade como território marcado pela tradição multicultural do Imperio Austro-húngaro. Kundera entendia que este Império foi uma grande oportunidade para criar um Estado forte no centro da Europa e que os austríacos estavam divididos entre seguir “o arrogante nacionalismo da grande Alemanha” e a sua própria missão centro-europeia; por isso não conseguiram construir um Estado federal de nações iguais. “O seu fracasso foi um fracasso para a Europa”. O Imperio Austro-húngaro dividiu-se em muitos pequenos países cuja fragilidade permitiu que primeiro Hitler e depois Estaline os subjugassem.

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