BISCATES | “Sobre o Bloco de Esquerda” | por Carlos de Matos Gomes in “A Viagem dos Argonautas”

carlosdematosgomesEm 25 de novembro de 2011 o Centro de Estudos Sociais (CES) da universidade de Coimbra organizou um colóquio sobre João Martins Pereira (JMP), um dos mais argutos pensadores políticos da esquerda portuguesa. Participei nesse colóquio com um texto sobre as esquerdas, intitulado “A esquerda e o poder”, que me parece ainda servir para dizer o que penso sobre a crise do BE, que é, para mim, um sintoma da crise da esquerda europeia, mais do que um caso de habitual guerrilha de fações dentro de um grupúsculo, ou de vaidades pessoais, como alguns o apresentam.

A grande questão no centro da crise do BE é, para mim, o seu posicionamento relativamente ao poder. Dizia JMP na nota inicial de um artigo que citei, na Revista Critica de Ciências Sociais de Maio de 1985: “entendo que um projeto político tem de comportar uma concepção de organização da sociedade, a expressão mais ou menos coerente de uma ideologia de classe, ou de grupo de interesses sociais homogéneo e uma intenção/projeto de luta pela conquista e pelo exercício do poder, a fim de dar corpo à organização social proposta.”

Tal como a João Martins Pereira, o poder, a sua conquista e o seu exercício parece-me ser o centro da acção politica.Há quem pense assim no BE e o afirme e quem não pense e não o diga, refugiando-se num discurso maximalista de poder total e de classe – ditadura do proletariado, ou perto disso, ou de açãocentrada na denúncia e de protesto. Estas duas visões deixaram de ser compatíveis dentro do BE.

No meu ponto de vista, os partidos políticos (os tais projetos políticos de que falava JMP) estão, com excepção do PCP, numa fase de grandes tensões internas entre os que continuam a agir e a comportarem-se como se vivêssemos num passado, quando estamos já a viver num presente radicalmente diferente daquele em que eles agem e os que querem dar resposta ao presente e prepararem-se para o futuro. No fundo, a habitual luta entre progressistas e conservadores.

Daí que seja um exercício quase inútil e de certo modo masoquista fazer a história dos projectos políticos de esquerda em uso corrente durante mais de um século, e que se esgotaram. Embora, como é natural, os seus protagonistas não o percebam e sejam, como se vê no PS e no BE as fações conservadoras que se mantêm no poder, para já não falar no PCP.

As respostas que esquerda no seu conjunto e na sua diversidade encontrou no passado, deixaram de servir para analisar a realidade, para exercer o poder na sociedade no seu actual estádio e, mais ainda para a transformar. Há quem no BE reconheça o obsoletismo das propostas originais e quem as entenda atuais. Quem tome Marx como ponto de partida e quem o tome (e em especial a Lenine) como sacro santo ponto de chegada. É que existe uma versão marxista-leninista da teoria do fim da História!

O nosso modelo de sociedade está em causa (no ocidente industrializado) e com ele o tipo de poder necessário para continuarmos a viver com os padrões a que as suas classes médias (as verdadeiras massas que substituíram na realidade os proletários, embora não nos discursos maximalistas) estão habituadas.

Os velhos instrumentos de navegação não servem para reconhecer as novas referências, embora cada comandante e cada piloto grite para a sua tripulação que sabe para onde vai e que tem um rumo, mas no íntimo devemos(enquanto humildes marinheiros) reconhecer que andamos à deriva.

Estamos todos bastante desorientados (exceto os iluminados quer de direita quer de esquerda), e julgo que seria boa altura de um saudável exercício de dúvida, de humildade, de ouvir os outros, de evitar anátemas.

Talvez ajudasse e encontrar saídas reconhecer que:

– a noção de esquerda é plural, existiram e existem várias esquerdas;

– algumasesquerdas foram e são incompatíveis entre si, não são miscigenáveis, nem unificáveis, logo, não podem ter projetos políticos comuns. Não vale por isso a pena perder tempo e energias nessa ilusão da unidade da esquerda;

– os projectos políticos das esquerdas que se afirmaram revolucionárias e anti-social-democratas falharam nos seus objetivos de exercer o poder e de transformar a sociedade;

– além de terem falhado esse objectivo, ou talvez por isso, as esquerdas são também responsáveis pela situação em que nos encontramos. A realidade presente é a resultante de um sistema de forças e as esquerdas fizeram parte dele. As que aceitaram exercer o poder e as que ficaram de fora;

– para o mau resultado contribuíram todas as famílias da esquerda, as sociais democracias e socialismos humanistas; marxismos ocidental e oriental; novas correntes marxistas, mais ou menos radicais;

Há quem no BE reconheça estes pressupostos e se bata por novos compromissos que contribuam para levar a esquerda (uma certa esquerda) ao poder e quem no BE prefira conservar a pureza dos princípios, os mesmos óculos de leitura. Aqueles partem. Estes ficam;

A fratura no BE passa entre os que entendem fazer sentido lutar pelo exercício do poder à custa de certas concessões doutrinárias, e os que preferem manter e acentuar as diferenças, provocar ruturas, manteros antagonismos inultrapassáveis desde o seu nascimento. Seguir o seu próprio caminho com a sua receita para a salvação.

Julgo que a distância do poder e o desdém pelo poder de parte do BE tornaram mais difícil a compreensão das mudanças que estão a ocorrer em Portugal, na Europa e no mundo, favorecendo uma atitude idealista de fuga da história e da realidade.

Conheço o argumento da parte que ainda resta no BE de que um projecto político não se esgota no exercício do poder. Pois não. Também um clube de futebol não se esgota na prática do futebol, mas não se reduz a assistir aos jogos e assobiar o árbitro! Um jogo de futebol não se esgota nos golos, mas são eles que determinam o resultado!

A fratura do BE, que me parece irremediável, tem origem na visão do poder que se explica na tese de Bloch, tão presente na prática das esquerdas não sociais democráticas, segundo a qual a revolução burguesa “limitou a igualdade à igualdade política”. Trata-se de uma afirmação historicamente insustentável (basta pensar nos ganhos de igualdade censitária, racial, sexual), mas justifica e justificou a recusa do exercício do poder e dos compromissos que ele implica para que a igualdade se estenda à economia, à educação, à saúde, à justiça.

O que se está a assistir no desmantelar do BE, com as façõesapegarem cada uma na sua trouxa e a regressarem às casas de origem é fruto das clivagens que não conseguiram, não quiseram ou não souberam superar entre os herdeiros do marxismo oriental e os herdeiros do marxismo ocidental, entre estes e as sociais democracias.

Em claro, não há hoje alternativa na Europa a projectos de poder que não sejam, no limite, social democratas, mas os herdeiros dos partidos comunistas tradicionais, dos movimentos mais ou menos radicais, das antigas extremas-esquerdas, continuam a rejeitar a realidade, propondo a sua transformação à força de voluntarismo, demagogia e populismo. Acredito que o façam com a melhor das intenções como apaziguador de consciências.

É a questão do poder que fez e faz as várias fações do BE repelirem-se.A crise atual do BE é um excelente revelador dos becos em que as esquerdas (e as direitas) estão metidas.

Haverá, pelo que se ouve, quem no BE acredite e se bata pela ideia de que felicidade através da igualdade pode não ser alcançável, mas uma maior justiça pode e que vale a pena lutar por ela. Mas haverá também quem prefira pensar-se como uma vítima e não como um conquistador.

Carlos de Matos Gomes

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