Esta guerra na Ucrânia é como todas a outras. É um facto político recorrente. Pode ser analisado recorrendo a métodos racionais ou emocionais. Para os militares esta guerra é analisada recorrendo à racionalidade. Qual é o objetivo da guerra: «Destruir o inimigo ou retirar-lhe a vontade de combater» (Clausewitz — A Guerra). Quando uma parte destrói o inimigo a guerra termina com uma rendição; quando uma parte entende que é mais ruinoso jogar no tudo ou nada, que perdeu o ânimo para combater a guerra termina por negociação.
Os militares reconhecem a ineficácia de insultar os contendores, exceto para os implicados no fragor do combate e da batalha, como escape das ansiedades. Os militares também sabem que a análise de uma guerra não depende da bondade e ou maldade dos propósitos dos contendores, mas do seu potencial, o que inclui equipamento, treino, comando e combatividade. Os militares sabem que o resultado das guerras entre Atenas e Esparta, das invasões romanas, napoleónicas e nazis, a batalha de Trafalgar, ou de Lepanto, a ocupação das Américas e de África não foi determinado pela moral, nem pelos princípios da guerra justa, já de si um conceito bastante difuso, que hoje surge associado a um outro que é o do Direito Internacional, aplicado segundo as conveniências e os preconceitos, de forma amoral, porque hipócrita.
A história não é neutra, se fosse uma ferramenta seria um canivete suíço.
A invasão russa da Ucrânia tem motivado várias lições de história daquela região da Europa que nos contam o seu passado desde a antiguidade, mas os historiadores raramente falaram das duas invasões da Europa ocidental à Rússia, a de Napoleão e a de Hitler, eu nunca os ouvi.
Essa referência não é, contudo, a meu ver, já útil como instrumento de análise do presente. A invasão está a decorrer e assunto arrumado. O conflito irá terminar. É histórico que os conflitos terminam, mesmo a guerra dos romanos contra os parsas terminou ao fim de 300 anos, com a derrota de ambas as partes, diga-se, e a vitória de um terceiro império.
Mas há dois exemplos do passado mais recente que poderiam ter algum interesse para lidar com a situação presente e a de curto prazo, que evitasse, ou amenizasse o sofrimento de quem sempre sofre, os povos, aqueles que são ultrapassados pela história e pelos interesses que a fazem mover.
Um desses exemplos diz-nos respeito: As invasões francesas, napoleónicas, da Península Ibérica. A Espanha aceitou um rei francês, irmão de Napoleão e ser uma base francesa. Portugal também aceitou os franceses, mas os ingleses (com Wellington) vieram lutar contra eles em Portugal e parte dos portugueses apoiou-os. Quando os ingleses (tropas anglo-lusas) venceram nas linhas de Torres expulsaram os franceses (Massena) e os espanhóis aproveitaram para fazer o mesmo.
Num post no FB, o embaixador Luís Castro Mendes escreve a propósito de uma prestação do historiador Fernando Rosas na CNN que este está a cometer o mesmo erro que foi o de Vasco Pulido Valente, noutro tempo: reduzir a análise da realidade ao precedente histórico e minimizar as diferenças do novo para magnificar as constantes do passado. O meu amigo David Martelo, historiador com vasta obra na área da polemologia faz uma excelente síntese do passado de conflito na Europa Central a que deu o título: CORTINADOS GEOPOLÍTICOS, sobre o conflito “que opõe atualmente a Rússia aos aliados da OTAN, localizada sobre a fronteira da Ucrânia”, mas essa história não explica o presente.
A História serve para tudo. O que quer dizer que serve de pouco. Há exemplos para todas as explicações. O passado pode ajudar a perceber o presente, mas sem entendemos o presente o passado serve de pouco. O Japão não percebeu que o presente tinha mudado com a arma atómica e teve uma terrível surpresa. Marcelo Caetano não percebeu que o Exército de 1974, após 14 anos de guerra colonial, não era o Exército que tinha partido para Angola em 1961 e teve a surpresa do 25 de Abril. A Revolução Francesa e a Russa são exemplos de surpresas por incapacidade de perceber que o presente não é uma evolução em linha reta do passado. São inúmeros os exemplos.
Mas a História tem constantes. Essas é que devem ser exploradas e estudadas para evitar surpresas. A constante da História é a luta pelo poder. É a luta por interesses à margem de qualquer referência moral. Não há luta de Bem contra o Mal.
A dita crise da Ucrânia é uma luta por interesses, mais uma. Os interesses da Rússia são claros e explícitos: Não quer ter inimigos acampados à porta! Os interesses dos Estados Unidos surgem camuflados com a mantra do costume da defesa da liberdade, uma canção esfarrapadíssima. Mas é possível lê-los: O interesse de Joe Biden surgir a meio do mandato como um presidente em guerra, um capitão América. O interesse dos Estados Unidos em obterem lucros diretos e indiretos com o aumento do preço do petróleo e do gás, dificultando a aquisição de gás russo pela Alemanha, principalmente, e proporcionando lucros às petrolíferas e aos aliados do Golfo, Qatar e Arábia Saudita. Congregar os países europeus à sua volta, para evitar tentações de autonomia. A lista é longa.
É destes interesses que se trata, a demonstração do poder de um império e o aviso a tentações de autonomia dos europeus. A NATO, referida por David Martelo, é uma confraria que tem um grão-mestre que paga, determina e pune rebeldes. A NATO são os Estados Unidos e uns apêndices.
Os países europeus representam na NATO o que as tropas de caçadores indígenas representavam para os exércitos coloniais, os landins de Moçambique, os askari do Tanganica, os gurkas da Índia: transmitem uma mensagem de unidade e igualdade, que é falsa, porque os comandantes e as armas são sempre do colonizador, do império, e servem os seus objetivos.
A NATO é, pois, uma entidade sofismática em que todos são iguais, mas um deles é mais igual do que todos os outros.
Na fronteira da Ucrânia jogam-se interesses. Os ucranianos são apenas os peões das nicas de mais um conflito. Quando os interesses estiveram equilibrados, regulados, os ucranianos passam à história, como já passaram os afegãos, os iraquianos, os sírios, os líbios, os venezuelanos, os equatorianos…
Ainda quanto à NATO, o turco Erdogan joga um papel duplo. Tem os seus interesses e está em condições de os negociar sem lhe acontecer o que aconteceu a Saddam Hussein, ou a Khadafi, ou até a Bin Laden. O francês Macron, também corre na sua pista. Quando se fala da NATO fala-se também de uma equipa com várias camisolas que se expressa através da voz de ventríloquo por um secretário-geral que tem autoridade sobre o motorista.
Quanto a Portugal, a NATO portuguesa tem sede em Washington. Estamos como os cães de água do Açores de Obama, ou como o sacristão das missas cujo papel é dizer ámen e servir a água e o vinho numa patina. Sendo assim e, como dizia Salazar, não podendo ser de outro modo está tudo bem. Vivemos numa sujeição inevitável que dispensa justificações do género que os ministros dos negócios estrangeiros costumam dar: defendemos princípios. Não, não defendemos, obedecemos e pronto!
03/03/2022 |A inutilidade da moral para ler a guerra
Todas as guerras são condenáveis, a paz é um bem inestimável, todos os povos têm direito a escolher os seus destinos, todos os combates causam sofrimento, mortes, destruições e deslocações. A guerra é sempre uma amálgama de corpos, de sangue e de ruínas. Todos os seres humanos dotados de um mínimo de humanidade são contra a guerra. Contudo, a guerra é a mais antiga e continuada ação humana. A condenação moral da guerra nunca evitou a guerra, nem construiu a paz.
O primeiro dado de partida para a análise de qualquer guerra é não haver moral, mas apenas interesses. Os direitos dos povos e a moral não são elementos do jogo. Nunca são. Na Ucrânia não se defende a liberdade, nem o direito, como não se defenderam esses valores noutras invasões próximas de nós no tempo, a do Iraque, do Afeganistão, da Líbia, da Síria. Como não foram para os defender que se desencadearam as guerras no Vietname ou, mais atrás, as invasões da Hungria e da Checoslováquia. Como, ainda mais atrás, não foi pela defesa de valores morais que ocorreu a divisão da península da Coreia.
O segundo dado é o de a guerra ter como motivo a conquista de vantagens, ou a defesa de situações e de os pretendentes à conquista desses dois objetivos estarem dispostos a utilizar a violência para os alcançar. Não há guerra sem violência.
O conflito da Ucrânia levantou questões reveladoras da frágil camada de verniz racional que cobre o núcleo de interesses dos Estados e dos nossos amados líderes. A racionalidade é apenas uma versão do interesse. No fundo, os dirigentes políticos andam atrás da turba e a turba age à voz. Corremos à frente dos nossos tambores e cornetas.
O oferecimento dos dirigentes da Ucrânia parra entrarem como membros da União Europeia e a resposta dos dirigentes da União é exemplar do ponto de barganha em que os Estados se movem. Há uns meses a UE discutia as violações aos princípios do Estado de Direito pela Hungria e a Polónia. Agora, perante a Ucrânia são exemplos de comportamento democrático!
A Ucrânia aproveita a invasão Russa para fazer um ultimato moral: ou entramos para a União Europeia e para a NATO ou a União Europeia é cúmplice dos resultados do nosso interesse em pertencer a essas duas alianças que nos garantem negócios em segurança.
É uma atitude inteligente e reveladora de bom domínio das emoções alheias por parte do regime ucraniano. Ninguém na Europa da boa vida gosta de ver edifícios esventrados, multidões em fuga. Há que aproveitar enquanto as emoções estão a quente. Zelensky aproveitou.
Mas a adesão da Ucrânia à NATO e à União Europeia coloca a questão: porque não admitir, então, a Turquia na UE? O regime político da Ucrânia é mais “democrático” que o da Turquia? É que a Nato é, desde que Portugal se fez democrático, uma aliança de democracias… em tese, claro. A relação entre negócios e política na Turquia de Erdogan mais transparente que a dos oligarcas ucranianos com o regime chefiado por Zelensky?
Dir-me-ão, a Turquia é muçulmana, com uma religião de Estado determinante da política. Nesse aspeto é muito diferente do Estado teocrático da Polónia? E, já agora o Reino Unido também é uma teocracia… simpática, mas é… e saiu da UE, mas pertenceu ao clube vários anos…
Eu sempre fui contra a entrada da Turquia na União Europeia, mas perante esta febre de competidores para mostrarem que são cada um mais ucranianos que os outros, entendo que a Turquia deve ser admitida. E já agora e porque não a Bielorrússia? O Lukashenco é mais independente da Rússia do que o Zelensky dos Estados Unidos?
Juntemos num pacote, que fica mais económico, o Zelensky, o Erdogan e o Lukashenco. Haja algum coerência e não se levem as propostas muita sério até elas servirem para promover algum negócio.
Os cidadãos europeus merecem quem os dirige com tão elevados princípios.
Vários países europeus iluminaram os seus monumentos e edifícios principais com as cores azul e amarelo da Ucrânia e muitos cidadãos europeus colocaram tarjetas da mesma cor nas suas fotografias com os dizeres: Somos ucranianos!
É um respeitabilíssimo reflexo de emoção e de bons sentimentos, mas é sabido quanto os sentimentos e as emoções perturbam a razão. Esta reação de entidades e de pessoas comuns é a esperada perante como resultado das ações de condicionamento de emoções que estão em curso nesta guerra, como em todas, aliás. Os nossos líderes querem que nos vejamos como ucranianos e fazem os possíveis através das imagens dos dramas pessoais que transmitem nas TVs que é reconfortante estarmos do lado do Bem. Mas a opinião que temos a nosso respeito pode não corresponder à opinião dos outros. Há quem nos veja como bielorussos. Julgo que é assim que nos vêm os dois antagonistas deste conflito, os poderes reais em Washington e em Moscovo.
Há pouco, 17 horas de domingo 27 de Fevereiro, a presidente da Comissão Europeia e o Alto Comissário para as Relações Externas da União Europeia vieram afirmar, de forma criptada, evidentemente, que a União Europeia estava para os Estados Unidos como a Bielorrússia para a Rússia: A UE era um Estado Satélite, por isso se prestavam a colocar em prática um conjunto de medidas de apoio à manobra dos Estados Unidos neste confronto com a Rússia, que é o que está a ocorrer e tendo essas duas superpotências como protagonistas.
Hoje o pensamento é um subproduto do futebol. O futebolês passou a linguagem filosófica. Aderindo então aos ventos do momento:
A “final four” é um torneio em que quatro equipas disputam uma classificação. Uma versão da final four apura os três primeiros e o quarto desce de divisão. O que se está a passar com a crise da Ucrânia é uma final four em que os dirigentes da União Europeia já decidiram que ficam em quarto lugar e deixam de participar nos jogos ao mais alto nível nas próximas temporadas
O que está em jogo na Ucrânia é decisivo para a União Europeia. Escrever e debater o papel da União Europeia neste confronto entre a Rússia e os Estados Unidos, tendo a China a observar, é decisivo em dois pontos: o político e económico (que papel para a União Europeia no Mundo?); e, principalmente, quanto à questão melindrosa e por isso raramente aflorada do conflito de civilizações.
Dirão alguns que se fala demais da Ucrânia, que a questão é da maldade intrínseca de Putin – e saem insultos, que são a negação do pensamento e a revelação da falta de argumentos: czar, filho de Estaline, soviético, facínora – e resmas de folhas de História para garantir que os russos veem aí, filhos dos comunistas sanguinários.
Na realidade:
A primeira questão que a Ucrânia coloca à UE é que o conflito assenta numa luta entre potências Estados Unidos e Rússia, com 3 vetores por parte dos EUA: (1) manutenção do dólar como moeda de troca internacional (a UE é o maior parceiro da Rússia e o segundo dos Estados Unidos); (2) o domínio militar em terra, no mar e no espaço (a Europa não tem poderio militar significativo em nenhum destes espaços); (3) por fim a questão energética (em particular o gás, de que a Rússia é um grande produtor e o coloca na Europa a 1/3 do preço do gás americano).
O PSD vive hoje o paradoxo da escolha que já atingiu mortalmente o CDS: Ser neoliberal ou ser social.
O neoliberalismo é fruto dos anos 70, e a sua versão prática foi estabelecida para contestar o modelo do Estado de bem-estar social do pós Segunda Guerra. Uma das primeiras experiências neoliberais foi levada a cabo no Chile. O ditador chileno Augusto Pinochet entrou em contacto com professores da Escola de Chicago (Milton Friedman, p.ex), que recomendaram medidas pró-liberalização do mercado e diminuição do Estado. Entre medidas constavam a drástica redução da despesa pública, demissão em massa de funcionários, e a privatização de empresas estatais. As eleições de Margareth Thatcher no Reino Unido e de Ronald Reagan nos Estados Unidos no início dos anos 1980 foram indicativos desse fenómeno de instauração da lei da selva económica e social, darwinismo social, chamaram-lhe, vencem os mais fortes e ai dos vencidos, a pobreza é fruto da preguiça ou da ausência de espirito lutador, não há sociedade, apenas clientes e consumidores.
Todos os Estados, até mesmo os impérios, têm uma soberania limitada pela dos seus competidores. Contudo, a limitação da soberania do Estado Português tem características próprias, devido, por um lado, à sua pequena dimensão (um território de 89 mil km2), à diminuta população e à escassez de recursos e, por outro, a uma situação geográfica na fachada atlântica da Península Ibérica e da Europa continental, logo, possuidor de uma localização estrategicamente importante para as grandes potências europeias, como ligação do Atlântico Norte ao Mediterrâneo e à costa africana. Este quadro foi praticamente constante ao longo da história.
O Estado Português, dados os condicionalismos, foi desde a fundação o que podemos designar como um estado vassalo da potência marítima, a Inglaterra, e todos os momentos chave da sua história foram determinados por ela, desde logo a independência contra outros estados ibéricos e contra a tentativa de unificação peninsular. Os cruzados ingleses estiveram com Afonso Henriques na fundação do Reino, serão tropas inglesas que decidirão Aljubarrota, e será a uma inglesa, Filipa de Lencastre, que se deve a estratégia expansionista da ínclita geração. Será ainda a Inglaterra que viabilizará a restauração da soberania no processo iniciado em 1640 e que assegurará a independência na Guerra Peninsular, com Wellington a defender Portugal das tropas invasoras de Napoleão. Também serão os ingleses que introduzirão o liberalismo e a modernidade europeia em Portugal, que, a partir de 1822, conduzirão o processo de independência do Brasil e, que, na Conferência de Berlim, atribuirão as colónias a Portugal, complementares das suas. O colonialismo português começa pela mão dos ingleses. A instauração da República deve-se, em parte e ironicamente, aos ingleses, que tinham desencadeado fervores patrióticos com o Ultimato.
Portugal entrou na Grande Guerra para manter uma utopia – a de que tinha um império colonial a defender – e para salvar outra – a da que implantara uma jovem República progressista, democrática e igualitária.
A questão primeira não é a da entrada de Portugal na Grande Guerra. É a Grande Guerra. Ao ver as fotografias das “grandes figuras” que lançaram a Europa na Grande Guerra, ocorre-me sempre uma pergunta: que queriam estas macabras figuras de bigodes, botas altas, capacetes e bonés? Que figurões são estes? As fotografias dos “grandes” da Europa, engalanados como porteiros de hotel, sentados, de perna cruzada, tanto podiam ser a de quem mandou para fogueira para aí uns dez milhões de europeus, como a de banqueiros reunidos para mais uma golpada financeira, como a de um gangue antes do assalto. Até, na melhor das hipóteses, podia ser a de um grupo de velhos depravados num bordel. Faltam as raparigas, é claro.
A Grande Guerra foi precedida por um bacanal de kaiseres e Kzares, de reis e de presidentes, de generais e industriais. Essas negras figuras tinham uma palavra na cabeça e babavam-se: Império. Mandaram matar pelos impérios em áfrica e na Europa como quem come tremoços com imperiais.
O Estado Novo, ou o salazarismo, era um regime nacionalista. Por ser uma ditadura, conservador, anti-comunista e anti-liberal e, acima de tudo, por ter durado muito, o salazarismo foi confundido com a Direita portuguesa. Passou a ser entendido como a essência da direita portuguesa. Para os seus adeptos e opositores, durante quarenta e alguns anos a Direita era o salazarismo e era nacionalista.
A realidade não era essa, mas a imagem projectada pela propaganda de António Ferro foi a de uma direita que tinha as glórias de Quinhentos e os Lusíadas como padrão da identidade nacional. Um grande povo de uma pequena nação. Portugal contra o Adamastor. Portugal contra o Mundo. O mapa de Henrique Galvão para a Exposição Colonial, com as colónias portuguesas a cobrirem a Europa e a legenda: Portugal não é um país pequeno, representa o pensamento da direita nacionalista portuguesa.
Essa direita foi apenas um hiato na história política da direita portuguesa, pelo menos desde o Tratado de Methuen. A velha direita, a direita da História, a direita de sempre, a da venda e do servilismo, é a que recebe hoje os funcionários da Troika com entusiasmo e fervor.
A crise financeira que começou em 2008 nos Estados Unidos com o subprime e que o sistema financeiro americano fez alastrar como um cancro para as dívidas soberanas da Europa, atacou principalmente aquilo que se designa por classe média e, em particular, as mais vulneráveis, as do sul da Europa, dos países que menos parcelas de produtos transaccionáveis de alto valor acrescentado colocavam (e colocam) no mercado global, os menos industrializados. Era pois natural que fosse esta “classe média” desprotegida e frágil a pagar as favas.
Classe média é um conceito pouco rigoroso, mas contém a ambiguidade que acabou por ser o fermento da revolta que teve a sua expressão nas eleições da Grécia e na vitória do Syriza. Classe média inclui os que têm rendimentos que lhe permitem aceder a um “certo” estatuto, ou que ganharam hábitos de consumo que os fazem julgar que pertencem a essa classe, ou que se sentem com direito a viver como se pertencessem. É um conceito diferente de ser rico, ou pobre, porque para a classe média não existe grande distinção entre o ter e o parecer. A crise destruiu essa ilusão. Quem deixou de ter, deixou de poder parecer que tinha. Passou da classe média à pobreza indisfarçável.
Em 25 de novembro de 2011 o Centro de Estudos Sociais (CES) da universidade de Coimbra organizou um colóquio sobre João Martins Pereira (JMP), um dos mais argutos pensadores políticos da esquerda portuguesa. Participei nesse colóquio com um texto sobre as esquerdas, intitulado “A esquerda e o poder”, que me parece ainda servir para dizer o que penso sobre a crise do BE, que é, para mim, um sintoma da crise da esquerda europeia, mais do que um caso de habitual guerrilha de fações dentro de um grupúsculo, ou de vaidades pessoais, como alguns o apresentam.
A grande questão no centro da crise do BE é, para mim, o seu posicionamento relativamente ao poder. Dizia JMP na nota inicial de um artigo que citei, na Revista Critica de Ciências Sociais de Maio de 1985: “entendo que um projeto político tem de comportar uma concepção de organização da sociedade, a expressão mais ou menos coerente de uma ideologia de classe, ou de grupo de interesses sociais homogéneo e uma intenção/projeto de luta pela conquista e pelo exercício do poder, a fim de dar corpo à organização social proposta.”
Tal como a João Martins Pereira, o poder, a sua conquista e o seu exercício parece-me ser o centro da acção politica.Há quem pense assim no BE e o afirme e quem não pense e não o diga, refugiando-se num discurso maximalista de poder total e de classe – ditadura do proletariado, ou perto disso, ou de açãocentrada na denúncia e de protesto. Estas duas visões deixaram de ser compatíveis dentro do BE.
Manifestar e Protestar – o onanismo dos partidos de protesto
O protesto tanto pode ser uma faca – e neste caso de dois gumes – como um escudo. Tanto podemos protestar para atacar e alterar uma situação como apenas para nos defendermos. Para evitarmos a mudança fazendo de conta que a desejamos.
Esta ambiguidade é a base em que assenta a tática dos chamados partidos de protesto. Protestam para se defender, para esgotar em seu proveito as energias dos que têm razão para protestar. O protesto, na medida em que não se dispõem a colaborar em nenhuma solução que não seja a totalidade da sua, esgota-se nele mesmo, satisfá-los como se satisfazem os onanistas.