Maria João Pires: “O estrelato é muito mais perigoso do que pensamos” | Entrevista de Diana Ferreira in Jornal “Público”

“Digo sempre que não tem mal pensar em ter trabalho e em ganhar a vida – é aliás muito saudável –, simplesmente que isso não seja primordial, porque o artista também tem uma missão que é importante ele saber separar da ambição material.” 27 de Janeiro de 2019

Para o grande público, Maria João Pires estará sempre numa grande carreira internacional ao piano, mas o instrumento não representa o centro da sua vida. A propósito do seu regresso a Portugal e do arranque do projecto do Centro de Artes de Belgais – que abriu portas em Dezembro passado, com um ciclo de concertos que se estende até Maio –, o PÚBLICO visitou a sua quinta, no distrito de Castelo Branco, e foi conhecer as intenções desta pianista, que é difícil separar da pedagoga e da cidadã activa com preocupações sociais.

O que a trouxe de volta a Belgais?
As saudades duma casa que construí durante 20 e tal anos. Percebi que não fazia sentido desligar-me dela completamente. Houve uma altura em que pensei nisso, mas não funcionou. Esperei uns anos, vivi sempre numa casa alugada, tive projectos em locais muito difíceis – dois coros infantis na Bélgica, em lugares sem acústica, sujos, com imensos problemas, em escolas que não facilitavam nada as coisas… Todas as pequenas contrariedades fizeram com que eu sentisse que um projecto como o que queria fazer necessitava de um espaço.

Mas Belgais é bastante diferente dos coros que tem na Bélgica, não é?
O meu objectivo com os coros, que integram crianças a partir dos cinco, seis anos, é encontrar o método certo para fazer com que a música influencie o seu crescimento e a forma como encaram a vida. É um trabalho sobre a resiliência da criança para, através da qualidade na forma de cantar e de ouvir, desenvolver a cooperação com os outros. Trata-se de crianças praticamente sem experiências musicais. Actualmente, temos sobretudo crianças de países africanos e, em grande maioria, muçulmanos, com um passado complicado, de guerra ou de outro tipo de abusos, algumas órfãs, ou que foram retiradas aos pais… Encontrar o melhor método tem-me levado muitos anos! Em Portugal tive uma boa experiência, graças a uma grande chefe de coro, que me deu um apoio extraordinário. Na Bélgica tenho um dos meus assistentes, o pianista Miloš Popović, que fez uma formação extraordinária neste anos. Com a mulher dele, cantora, formamos um grupo de três. Eu vou lá a cada dois meses, para supervisão. Sem um bom chefe de coro não se consegue.

Criou uma organização ou associou-se a uma instituição já existente?
Associei-me à Universidade Popular, onde os migrantes vão aprender variadíssimas coisas e levam consigo os filhos.

Em que momento é que o piano deixou de ser suficiente?
O piano nunca foi o centro da minha vida, nem em criança. Foi-o para o exterior, na medida em que sempre me viram como pianista, mas para mim e para as pessoas mais próximas nunca o foi. Um satélite muito importante, sim, que tomou um grande espaço, demasiado grande a partir de certa altura. Comecei a ensinar numa idade em que não se deve fazê-lo – tinha 12 anos.

A crianças mais novas?
Sim. Pediam à minha mãe para eu dar uma aula… e foi aí que começou a minha reflexão sobre como podemos tornar úteis as nossas acções. Isso sempre me preocupou muito. Mais tarde, criei Belgais. Já tinha quase 40 anos quando comprei a quinta. E, apesar das falhas, fiz um projecto relativamente bom. Agora estou a tentar fazer algo diferente, aproveitando a experiência passada e reflectindo sobre o que não correu bem e porquê, o que não fiz e deveria ter feito…

Mas a natureza do projecto é bastante diferente…
É a mesma!

Já havia workshops internacionais, com gente de todo o mundo?
Muitos. Só que talvez agora as pessoas me procurem mais, também porque sabem que tenho mais tempo, porque já não estou a fazer tournéesinternacionais.

O trabalho em coro não existe agora em Castelo Branco. Será retomado em algum momento futuro?Vamos com tempo, porque não quero cometer os mesmos erros do passado, não quero ligar-me a instituições. Prefiro fazê-lo duma forma verdadeiramente independente, com pessoas que estejam muito motivadas e que sejam capazes de fazer esforços para que as coisas funcionem, que não queiram apenas arranjar um emprego, que é uma coisa muito comum no mundo inteiro.

Até Maio, a agenda de Belgais está preenchida com um programa por mês.
E a partir de Junho vamos fazer o ciclo de Verão, que também vai ser temático. E vamos poder acolher muito mais público, pois faremos os concertos ao ar livre.

E a partir de Setembro?
Continuaremos com novos ciclos de concertos.

Temáticos e sempre à volta do piano?
À minha volta tenho “uma família” de muitos pianistas, portanto vai sempre haver piano nos concertos de Belgais, mas queria começar a convidar músicos que toquem outros géneros e outros instrumentos. Também gosto de misturar literatura, poesia, conferências, eventualmente dança… São projectos que têm de ir devagar, porque há sempre a componente financeira.

Mas em Dezembro correu relativamente bem.
Muito bem.

Onde encontra os jovens músicos que apresenta em Belgais?
O critério é procurar artistas que estejam verdadeiramente motivados para colaborar na sociedade sem pensarem única e exclusivamente na sua carreira. Digo sempre que não tem mal pensar em ter trabalho e em ganhar a vida – é aliás muito saudável –, simplesmente que isso não seja primordial, porque o artista também tem uma missão que é importante ele saber separar da ambição material. É importante que desenvolva a sua arte num campo livre, em que se possa realmente estudar, pesquisar. Hoje, no mundo inteiro, as escolas têm o grande problema da competição, de tal modo que os programas têm de ser “cada vez mais”: mais repertório, mais performance, mais capacidades, mais…

…habilidade técnica.
Que deixa de ser técnica, porque para um pianista, hoje, toda a habilidade manual é uma péssima técnica… O piano passa por uma consciência e por um trabalho muito grande sobre o corpo. E um trabalho de mãos super desenvolvido vai estragar o trabalho corporal, resultando num pianista sem boa técnica. Há uma série de componentes na música que exigem consciência corporal. Costumo dizer aos meus alunos: “O vosso professor não sou eu, é o vosso corpo e a capacidade que vocês têm de o desenvolver e de o melhorar.”

Como é que os selecciona?
Muito mais pela motivação do que pela qualidade da gravação que nos mandam.

Como é que pode aferir a motivação?
Têm de escrever uma carta bastante completa.

Se não souberem escrever, mas quiserem muito aprender…
A gente sente o que está por detrás das palavras usadas, vê-se se é só uma coisa superficial… Dantes dava muito mais importância à gravação. Com a idade e com o tempo, descobri que me enganava, porque há pessoas que não tocam nada bem mas têm uma verdadeira motivação e uma verdadeira capacidade de chegar lá. Mais do que muitos que tocam tudo e muito bem, mas não passam dali, porque não estão verdadeiramente motivados para essa pesquisa de que estamos a falar.

Os músicos dos ciclos de Belgais são participantes dos workshopsinternacionais?
Às vezes. No Verão passado fiz um curso e encontrei uma menina absolutamente fora deste mundo, com uma capacidade impressionante de falar através da música, de dialogar e de aprender. Essas descobertas acontecem. É óbvio que vou convidá-la, dar-lhe aulas… Não considero que os artistas se possam dar aulas uns aos outros – é mais uma transmissão. Eu sei e tu não sabes – isso não existe em arte. É um erro pensar-se dessa forma.

Talvez não apenas em arte.
Tem razão. O que posso dizer é que tive muitos mais anos de experiência. Tenho 74 anos. Fiz muitas experiências que posso transmitir a uma pessoa de 20; experiências que não podem ser transmitidas de uma forma técnica, ou através de um livro que eu escreva sobre técnica de piano, ou sobre como tocar com mãos pequenas, como ler uma sonata de Beethoven, como frasear, quais as diferenças entre uns compositores e outros. Mesmo que escreva muito bem, nunca funciona como ao vivo. A transmissão ao vivo da arte é essencial. E isso não significa que eu esteja a ensinar, ou que saiba mais do que eles, porque eles podem ser artistas extraordinários – mais do que eu –, só que eu tenho uma experiência a transmitir e eles transmitem-me capacidade de aprender como devo transmitir.

Isso não é a coisa mais difícil do mundo?
É muito difícil! É preciso uma grande humildade para a pessoa não sentir que lá porque é mais velha tem mais valor ou mais sabedoria. Essa transmissão de que falava foi muito destruída nos últimos anos, porque as pessoas acharam que não era necessário.

Mas é um tipo de partilha que requer uma disponibilidade muito grande. Ou a pessoa já tem uma situação financeira muito confortável, ou tem de cobrar bastante dinheiro para dispor do seu tempo.
Quando temos muita vontade e vale muito a pena fazer as coisas, acho que não passa tanto assim pelo dinheiro.

A um jovem pianista que esteja à procura do seu caminho na música, que conselhos pode dar? Os workshops internacionais de Belgais são acessíveis a muito poucos…
Não são assim tão poucos. Neste momento, não temos realmente possibilidade de aceitar alunos que não paguem os workshops, mas estamos a procurar ajuda. Já temos, da Bélgica e da Suíça, duas fundações que nos pagam bolsas de estudo.

Mas para alunos mais experientes.
Normalmente, sim.

Pensemos num aluno que esteja a acabar o conservatório e que queira candidatar-se ao ensino superior. Não vai ser admitido nos workshops de Belgais.
Em Belgais estamos sempre de acordo em ouvir as pessoas e aconselhá-las, tenham elas dez, 20, 30 ou 50 anos. Isto no que diz respeito ao piano, para os outros instrumentos ainda não.

 PÚBLICO DIANA FERREIRA

https://www.publico.pt/2019/01/27/culturaipsilon/entrevista/maria-joao-pires-deixei-identificar-digressoes-salas-concertos-tradicionais-1859566?fbclid=IwAR0pZ_NFx9Z8cRQwLjiHtTPf3Hwi6HUK3T41dINgBqxW8sfzbqKwHb471SA

 

 

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