ANGELUS NOVUS, A ALBÂNIA E A EUROPA | Fernando Couto e Santos

Umas das livrarias de que mais gosto em Lisboa é a Palavra de Viajante. Situada no nº 34 da Rua de São Bento, é especializada em livros de viagens, mas viagens no sentido lato, pelo que temos à nossa disposição uma ampla gama de literatura de primeira água em várias línguas: para além do português, há livros em inglês, francês, espanhol e, em menor quantidade, em italiano. Ou seja, em todas as línguas que tenho o privilégio de dominar (umas um pouco melhor do que outras, naturalmente). Nesta livraria, descobri, graças ao profissionalismo das suas proprietárias, Ana Coelho e Dulce Gomes, vários livros e autores que desconhecia. Uma das minhas últimas descobertas foi a tradução espanhola de um livro de um escritor albanês de que ouvira vagamente falar, de nome Bashkim Shehu. Da literatura albanesa, lera sobretudo inúmeros livros de Ismail Kadaré, mas também em tempos um de Fatos Kongoli e tenho memória de ter folheado algures – talvez na própria Palavra de Viajante ou numa outra livraria de culto para mim, a Nouvelle Librairie Française, dirigida pelo meu grande amigo Frédéric Strainchamps Duarte – um romance de Dritëro Agolli. Ultimamente, nalguma imprensa europeia, fala-se da escritora e artista plástica Ornela Vorpsi, nascida em Tirana e com livros escritos em três línguas: o albanês, a sua língua materna, o italiano, língua do país onde começou os estudos universitários e, mais recentemente, o francês, língua do país onde vive atualmente.


O livro de Bashkim Shehu chama-se Angelus Novus por alusão ao desenho homónimo feito em 1920, a nanquim, giz pastel e aguarela, pelo pintor alemão Paul Klee e a que alude o seu compatriota Walter Benjamin no ensaio Sobre o Conceito da História. O livro Angelus Novus é um híbrido, não é bem um romance, é uma narrativa -os franceses diriam um «récit» -em que o autor evoca episódios da sua vida em cativeiro, como preso político, e da de um companheiro de cela, Mark Gjoka ou Mark Shpendi que tentou o suicídio. A tentativa de suicídio é a ponte para o paralelo com o filósofo e ensaísta Walter Benjamin – abundantemente evocado também no livro – que efetivamente se suicidou em Port Bou após ter conhecimento que, sob pressão das autoridades nazis, a lei espanhola acabara de mudar e todos os estrangeiros chegados ilegalmente a Espanha seriam recambiados para França, esfumando-se assim a hipótese de conseguir alcançar Lisboa e daí partir para os Estados Unidos com o seu visto passado pelo consulado americano de Marselha.
A analogia entre um preso político da prisão de Burrel, de escassa formação académica, e os reveses de Walter Benjamin prende-se com a inclinação para o suicídio, mas também pelo inacessível e sobretudo pela figura do Angelus Novus, o anjo da História que, ao voltar o seu olhar para o passado – como nos é lembrado na contracapa do livro – não capta mais do que uma imensa acumulação de ruínas. O narrador, qual figura alegórica, articula histórias e recordações para testemunhar sobre o destino do seu companheiro de cativeiro. Esta edição espanhola de 2017, publicada pela editora Siruela, tem tradução de María Roces González e prólogo do escritor Bernardo Atxaga.
Trouxe este tema à colação para evocar a Albânia, um país de que se ouve falar muito pouco, provavelmente por, ainda que europeu, não fazer parte da União Europeia, mas também porque este país numa outra época -os mais jovens não têm obviamente memória desse tempo – foi o mais fechado da Europa, num enquistamento político que hoje só tem talvez paralelo, salvaguardas as devidas distâncias, com a situação da Coreia do Norte. O autor do livro supracitado, Bashkim Shehu- que vive atualmente em Barcelona – é, aliás, um exemplo dos sobressaltos que a Albânia viveu noutras épocas. Nascido em 1955, Bashkim Shehu teve uma infância privilegiada por ser filho de Mehmet Shehu, antigo membro das Brigadas Internacionais durante a guerra civil de Espanha, primeiro-ministro e correligionário do presidente Enver Hoxha. Na sua juventude, Bashkim Shehu, por ser filho de quem era, viajou ao estrangeiro – sobretudo a Roma e a Paris-, privilégio vedado à maioria da população albanesa. A sua vida desmoronou-se, porém, após a morte do seu pai, sobrevinda a 17 de dezembro de 1981, em condições misteriosas, presumivelmente um assassinato, disfarçado de suicídio, perpetrado pela polícia política, a Sigurimi. Mehmet Shehu parecia opor-se à política excessivamente isolacionista de Enver Hoxha (que viria a falecer em 1985, sendo substituído por Ramiz Alia). Foi então considerado um traidor, a sua memória conspurcada e a família vítima de execração pública. Jovem intelectual, Bashkim Shehu foi encarcerado em 1982 num dos piores presídios do regime comunista albanês onde criminosos de direito comum se misturavam com presos políticos, o já citado presídio de Burrel. Só seria libertado após a queda do regime em 1991.
A Albânia conheceu, durante o período que mediou entre o fim da segunda guerra mundial e a queda do comunismo no dealbar dos anos noventa, um dos regimes mais severos da Europa do pós-guerra. Rompeu com a Jugoslávia de Tito logo em 1948, com a União Soviética durante o consulado de Krutschev e com a China após a morte de Mao. O rompimento com a China nos anos setenta, depois da saída do Pacto de Varsóvia ainda nos anos sessenta, acentuou o isolamento internacional do regime que tinha poucas representações diplomáticas no exterior. Das grandes nações europeias, apenas a França e a Itália tinham algumas relações regulares com o país descendente dos antigos Ilírios. Por outro lado, proclamou-se oficialmente um Estado ateu, mas a pureza revolucionária de que se reclamava aparentava-o mais a um certo fundamentalismo de raiz religiosa do que a outra coisa qualquer.
Curiosamente, em Portugal, após a revolução de 25 de Abril de 1974-a nossa revolução dos cravos, como é mais conhecida extramuros -, houve alguns partidos – nalguns casos meros grupúsculos – que manifestavam um certo fascínio pelo regime albanês. Já numa outra ocasião contei que algumas pequenas editoras, quase de vão de escada, às vezes ligadas a organizações partidárias, chegaram a traduzir – de forma mal-amanhada – livros de Ismail Kadaré que se servia de alegorias para criticar indiretamente o próprio regime albanês, embora a sua posição perante esse mesmo regime tenha sido amiúde considerada como ambígua. Por outro lado, lembro-me de episódios caricatos ocorridos em meados dos anos oitenta que hoje fariam corar de vergonha – ou talvez não – os próprios intervenientes. Nas eleições legislativas de 1985, a UDP -União Democrática Popular -, assim como um outro partido, quase seu apêndice, de nome PC (r) – Partido Comunista (reconstruído) – apareceu na campanha eleitoral com uma proposta radical de não pagamento da dívida por parte de Portugal, seguindo o exemplo da Albânia. Ora, num ato de campanha, interrogado por um cidadão que lhe disse que esse ato seria suicidário, pois representaria uma asfixia do país a nível internacional, um dirigente do PC (r) respondeu assim: «você diz isso porque é um ignorante». Não conheço melhor maneira de um dirigente dizer indiretamente: «não votem no nosso partido»!
Hoje, a Albânia pretende entrar na União Europeia, mas essa possibilidade parece ainda longínqua, pois o país tem muitos problemas económicos, sociais e políticos. Porém, se refleti aqui sobre a Albânia é porque este país é um dos exemplos mais acabados de como o isolacionismo deixa sequelas durante décadas e hoje, num mundo globalizado, os países não podem viver de forma sustentável se ficarem isolados do mundo, contrariamente ao que muitos insinuam por aí. Se a União Europeia, em vésperas de mais umas eleições para o Parlamento Europeu, revela um autismo em relação aos verdadeiros interesses das populações e se encontra emaranhada numa teia burocrática de natureza quase autofágica, a alternativa não será seguramente o fim da União Europeia, mas uma renovação ou talvez mesmo uma refundação.
Os países europeus estão a perder importância no mundo, vencidos pela demografia e não só. Sozinhos, segundo a lógica de cada um puxar a brasa à sua sardinha, não vamos lá. A China, por exemplo, está a tomar a dianteira economicamente e, pior do que isso -ou quiçá em consequência disso -, pode assumir o controlo do discurso político, o que se tornará perigoso vindo de um país em que não há liberdade de expressão e, portanto, a mordaça não permite a circulação de ideias. Se nos Estados Unidos, por muito discutíveis que possam ser as suas políticas e as suas atitudes na esfera internacional, há uma sociedade civil forte e um meio universitário de enorme espírito crítico que contestam as decisões governamentais, com a China isso não acontece, nem se vislumbra que possa acontecer num futuro próximo. O perigo está aí ao virar da esquina e a Europa se pretende ser uma referência e ter protagonismo a nível internacional, não pode voltar aos velhos egoísmos nacionais. Defender os interesses de cada país é legítimo e indispensável, mas no quadro de uma cooperação europeia que privilegie o essencial em detrimento do acessório, em que os grandes países não subalternizem os de menor dimensão. Talvez seja utópico pensar assim, mas o objetivo é possível de alcançar. Assim haja dirigentes que consigam assumir o desafio e é esse, infelizmente, o nosso principal problema…

Fernando Couto e Santos
Facebook, 12/05/2019

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