” O Movimento das Forças Armadas e as sereias”

…. O antigo Regime, filho de um golpe militar que cedo se desviou do seu inicial neutralismo ordeiro para se converter num dos pilares da nova ordem antidemocrática, soube cultivar com cuidados de jardineiro babilónico a lisonja hiperbólica ao Exército redentor. Esta orgia de louvores foi durante dezenas de anos prato obrigatório e sem resistência. Não houve oposição cívica,eleitoral ou militante que o regime defunto não exorcizasse,cobrindo-se de alto a baixo com referência TABU ao papel do Exército na instauração do Estado Novo. Manobra óbvia e repelente, nunca a oposição a soube neutralizar com êxito. Nem era daquelas que, de fora, se neutralizam, como se viu. Foi o lisonjeado que acabou por se enjoar de tanto suspeito mel. Mundo à parte no seio da Nação, embora sua emanação primitiva, o Exército, ajudado pela prática histórica africana, acabou por compreender o papel da lisonja cultivada ou da auto-idolatria em que o Fascismo o instalara para melhor o utilizar e subsistir. A idolatria aberrante e ritual não o engrandecia, COMPROMETIA-O e ISOLAVA-O dos interesses globais do nosso Povo. Todos os seus valores de referência, sentido do interesse nacional, culto da generosidade activa e da isenção pessoal, coragem física e moral eram subtilmente desviados dos seus fins próprios para encarecimento de uma obra baseada em princípios opostos. Nunca houve entre nós uma tentativa mais bem lograda para corromper uma instituição através das suas próprias virtudes do que aquela que o Estado Novo, com constância digna de melhor fim e conivência de uma boa parte da hierarquia militar, filtrada por disposições maquiavélicas, soube levar a cabo, para mal da Nação e desespero dos seus cidadãos ávidos de liberdade……..

in EDUARDO LOURENÇO (1975) – OS MILITARES E O PODER seguido de O Fim de Todas as Guerras e a Guerra Sem Fim. Gradiva (ed)(2013),146

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