A criação de um museu que espelhe aquela que foi a gesta marítima portuguesa, bem como todas as suas consequências, só faz sentido se esse espelho não for mentiroso. Nesse espelho da história, não importa glorificar à moda antiga uma passada e incerta glória nacional. Terá de ser um espelho não em que vejamos uma imagem idealizada nossa, mas através do qual sejamos capazes de ver a verdadeira imagem que imprimimos no mundo. O nosso espelho terá de ser o olhar do outro.
Nesse sentido, a polémica em relação à denominação desse projecto (que em meu entender faz todo o sentido), e que foi expressa na voz de académicos nacionais e estrangeiros, que se pronunciaram contra o seu eventual baptismo enquanto Museu das Descobertas, tem plena razão de ser. A semântica é delicada: não apenas o outro, o putativo “descoberto”, pode com legitimidade não se reconhecer nessa narrativa, como o próprio termo, historicamente datado, não abrange todo o arco temporal das expansões marítimas iniciadas no século XV e que serviram a um projecto imperial que, em rigor, só se conclui no séc. XX, com a descolonização completa das chamadas províncias ultramarinas.
Com efeito, as chamadas descobertas são um projecto, à nascença, incompleto, a que uma boa dose de acaso veio emprestar desenvolvimentos inesperados — o achamento do Brasil é, até prova em contrário, um desses acasos. Esses desenvolvimentos acrescentam à expectativa inicial novas oportunidades. Entre o domínio estratégico das rotas comerciais, a disseminação do cristianismo e as oportunidades da colonização de novos mundos, ergue-se o projecto imperial português que, entre vicissitudes e originalidades (como a transferência da corte para o Brasil durante as invasões napoleónicas), se constitui numa pragmática e ao mesmo tempo difusa noção dos portugueses em relação a si próprios: o Império sempre foi um fato largo vestido pela propaganda de Estado e, para desgraça do país e da maior parte das colónias, desfez-se pela mesma razão dos demais — pela sua iniquidade —, mas prolongando uma agonia imperial anacrónica, com o sacrifício de vidas que se conhece, quando já todos os demais impérios clássicos europeus se tinham desintegrado.
Os temas de um tal museu a construir são, também, mas não apenas, por isso, imensos: engenharia náutica, astronomia, cartografia, estratégia política, diplomática e comercial, tácticas militares de dominação de outros povos, abusos e ultrajes, miscigenação, doutrinação, narrativas e epopeias, extermínio de povos nativos, escravatura, mobilidade da corte, atribuição de territórios, guerras com potências concorrentes, novas produções e exportações, trocas culturais e suas reverberações, declínio e resiliência imperiais, reinos tribais, humilhações entre o concurso das potências, importância efectiva das colónias no séc. XX, discurso imperial, formas de organização administrativa colonial, estatuto dos nativos, colónias penais, desterros e exílios, repressão dos nacionalismos e dos seus representantes, guerra colonial e descolonização, emigração, deserções, reminiscências e ecos culturais nas artes em Portugal e nas múltiplas regiões agregadas ao projecto imperial português— devidamente secundadas por uma referência comparativa às prévias gestas náuticas de outros povos, dos fenícios, cartagineses e gregos aos chineses, entre outros, e dos conhecimentos geográficos, sendo que a competição pelo domínio dos mares com outras potências será decorrente da própria história da dominação de feitorias e territórios, ou seja, faz parte, à luz nacional, dos feitos e revezes da chamada gesta das “Descobertas”.
A este conjunto de realidades soma-se ainda, porventura, o actual desígnio estratégico relativamente à pretensão do alargamento da demarcação da plataforma marítima da Zona Económica Exclusiva de Portugal, bem como a relevância e as estratégias das infra-estruturas portuárias portuguesas na actualidade.
Outro aspecto que decorre de um projecto museológico tão abrangente é o da sua necessária multi-polaridade. Para dar um exemplo que me parece eloquente, o desaterro das duas docas da Ribeira das Naus, onde as caravelas se construíram, representou um marco na nossa visão moderna: ela expôs ao nosso olhar o que era apenas suposto. Essas estruturas parecem-me de tal modo emblemáticas que não podem excluir-se de um todo museológico, ainda que essa unidade tenha de fragmentar-se no espaço físico. E parece-me também que, independentemente de interlocuções com outros espaços museulógicos já existentes — o Museu Nacional de Arte Antiga, o Museu do Oriente ou o Museu de Marinha, por exemplo —, a frente ribeirinha da cidade é o espaço por definição onde essa experiência que foi a da partida das naus e a do comércio global que daí adveio se manifesta, se exprime e sintetiza: o que Sagres ou o Cabo da Roca projectam simbolicamente para além do limite físico do território, Lisboa concretizou no bojo das naus que dela partiram.
De um modo sumário, essa frente ribeirinha estende-se entre a Ribeira das Naus e a Torre de Belém. É o traçado clássico. Há um passado recente, no séc. XX, que procura exactamente inscrever essa narrativa na frente ribeirinha: a Exposição do Mundo Português, em 1940, precedida pela Primeira Exposição Colonial Portuguesa que se realizou no Porto em 1934. Essas leituras deixaram marcas ainda hoje presentes, e impossíveis de ignorar. Algumas foram digeridas e completamente assimiladas ao presente: o Padrão dos Descobrimentos. O Museu de Arte Popular. O pequeno farol que resiste a seu lado. O Jardim do Império, com suas recentes polémicas sobre jardinagem e heráldica. E por aí fora.
Quando das primeiras grandes exposições que exponencialmente revisitaram, “pós-modernamente”, a impressão deixada por Portugal no mundo, procurando resgatar os aspectos mais consensuais da experiência portuguesa, houve uma ênfase particular, acompanhada de uma re-descoberta ou actualização dos símbolos de antanho (como o astrolábio, o nónio ou a esfera armilar), esteticizados de acordo com uma “nova” abordagem.
Desse surto celebrativo destacam-se, num primeiro momento, a exposição O Triunfo do Barroco, durante a Europália ’91 (patrocinada pela Fundação das Descobertas, predecessora da actual Fundação Centro Cultural de Belém), e a própria construção do Centro Cultural de Belém (idem), assinalando a primeira presidência portuguesa da Comunidade Europeia em 1992.
A Fundação das Descobertas foi criada pelo Decreto-Lei nº 361/91 de 3 de Outubro da Presidência do Conselho de Ministros (era Presidente da República Mário Soares e Primeiro-Ministro Aníbal Cavaco Silva), e o seu preâmbulo descrevia deste modo o âmbito do seu propósito: “O nome da fundação decorre da sua localização e do período histórico em que é criada. Belém é o cais da história dos Descobrimentos portugueses e esta é a década em que a nossa pátria comemora meio milénio sobre a sua maior gesta”.
O Triunfo do Barroco é indissociável da instauração da Companhia de Jesus em Portugal no séc. XVI por D. João III, e das suas repercussões evangelizadoras: Goa, Brasil, Cabo Verde, Guiné, Serra Leoa, Malaca, Japão, China, Tibete, Sião, Congo, Angola, Etiópia, Moçambique. São os Jesuítas, incluindo a oratória de Vieira, os artífices-mor da talha dourada, entendida como expressão de uma feliz idade de ouro, que nos deleita e nos projecta na modernidade como nação entre as nações do seu tempo.
Seguiu-se a Lisboa 94 – Capital Europeia da Cultura, comissariada por Vitor Constâncio (depois da demissão de Marcelo Rebelo de Sousa), que falará no programa oficial sobre uma Lisboa como “um ponto de encontro entre culturas”, e cuja programação incluirá a necessária evocação do V Centenário da assinatura do Tratado de Tordesilhas. A este propósito será interessante ler o artigo de Kimberly DaCosta Holton que, na sua introdução, sublinha aspectos dialécticos subtis:
“L94 celebrou simultaneamente a redução das fronteiras portuguesas que se seguiu à libertação das colónias e a expansão das fronteiras socioespaciais que se seguiu à integração na CE a partir de 1986. Esta negociação entre as forças em conflito da redução e da expansão e entre a liberdade nacional e a integração europeia, reflectiu-se notoriamente na publicidade e na requalificação urbanas, levadas a cabo no âmbito de L94”. (in Vozes do Povo — a folclorização em Portugal, coordenação de Salwa El-Shawan Castelo-Branco e Jorge Freitas Branco, cap. VII, Lisboa 94, Capital Europeia da Cultura, p. 171-187, Etnográfica Press, 2003). Aliás, a leitura da obra é de enorme pertinência para este debate.
Veio depois a Expo ‘98, com toda a temática associada aos Oceanos — “Os Oceanos, um património para o futuro”. Como escreveu Claudino Ferreira, “foi em parte em função deste compromisso que, da comemoração das descobertas portuguesas, se passou ao tema mais genérico dos oceanos, tema aparentemente mais capaz de concitar a adesão da comunidade internacional e de conferir originalidade ao evento de Lisboa” (Claudino Ferreira, A Exposição Mundial de Lisboa, in Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 51, Junho de 1998).
Vinte anos mais tarde, a realização do festival Eurovisão da Canção vem recuperar os elementos identitários aparentemente indissociáveis e insubstituíveis da ideia mesma de portugalidade. A actividade principal do evento tem lugar no Pavilhão Atlântico (cujo nome vem sendo sucessivamente alterado consoante a mudança de proprietário), cuja cobertura foi idealizada como representação arquitectónica invertida do arcabouço de um navio, para a Expo ’98. A estrutura cenográfica que define a área do palco da Eurovisão tem como motivo de inspiração a esfera armilar. O logotipo do evento desenha-se sobre a espiral de uma concha. E os eventos paralelos adoptam a frente ribeirinha como paisagem emblemática e simbólica, com o Terreiro do Paço como expoente de uma monumentalidade imperial, que de facto é — tal como sempre pretendeu ser —, e o nóvel Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia, símbolo de uma modernidade que se quer inscrita na paisagem ribeirinha e desfrutável pelo público em geral — em contraste com o simplismo funcional do desenho das novas gares marítimas em S. Apolónia. Modernidade arquitectónica que tem, porém, uma visibilidade discutível em termos de imagem — é difícil apreciar visualmente as linhas de força do edifício do MAAT por detrás da parafernália própria do evento —, aspecto que foi pura e simplesmente ignorado no caso da instalação de uma tenda debaixo da famosa, por boas razões, pala do Pavilhão de Portugal, num acto de desprezo simbólico não apenas pela arquitectura portuguesa emblemática mas pela arquitectura em si.
Falando de frente ribeirinha, e da sua óbvia representatividade simbólica na relação com o rio e com o mar — com o Oceanário na zona mais oriental a demarcar de certa forma uma extrema que se demarca até à Torre de Belém —, dois edifícios permaneceram e permanecem excluídos dos diversos discursos enunciados, como se fossem elementos não-elegíveis do imaginário colectivo nestes vários contextos.
Isto é tanto ou mais singular se tomarmos em conta que esses dois edifícios não apenas configuram uma marca da modernidade arquitectónica do séc. XX em Portugal, como desempenharam um papel activo na projecção de uma ideia funcional de Lisboa como porto turístico cosmopolita — com um papel singular durante a Segunda Guerra Mundial, inaugurado com a chegada do navio Serpa Pinto transportando 253 passageiros, na sua maioria súbditos ingleses refugiados de guerra, em 1943 —, mas que foram, sobretudo, os lugares que protagonizaram de forma mais vívida os últimos e sofridos parágrafos do projecto imperial Português e do seu ponto final: a partida dos combatentes para as frentes da Guerra Colonial e o episódio do êxodo das populações brancas que nelas residiam, os chamados Retornados.
Refiro-me, naturalmente, às gares marítimas de Alcântara e da Rocha Conde de Óbidos, projectadas por Pardal Monteiro e construídas na década de 40, imóveis públicos afectos à Administração do Porto de Lisboa, classificados como MIP – Monumentos de Interesse Público desde 2012 e inseridos em Zona Especial de Protecção (ZEP).
Estes dois edifícios são, há décadas, uma espécie de lugares espectrais do imaginário lisboeta e português, aparentemente inactrativos ao aggiornamento das narrativas construídas sobre o esteio da “gesta” dos “descobrimentos”, da “vocação marítima”, “atlântica” e da “expansão” — palavras commumente utilizadas para consubstanciar aquilo que se traduz numa só palavra, porque de facto o foi, como Império português.
Este não saber o que fazer com eles — trata-se de dois edifícios fechados ao público salvo reserva e alugados para eventos privados —, vem reduzindo-os a uma espécie de embaraço que os vai despindo, por inércia, do seu aspecto simbólico, o que por sua vez vai levando a que pensemos neles como sarcófagos de uma coisa apenas (embora essa coisa seja de primordial relevância): é lá que estão os frescos do Almada Negreiros.
Ora os frescos do Almada Negreiros, para lá da sua excepcionalidade plástica, constituem em si mesmos uma narrativa de enorme abrangência, concatenando aspectos fundamentais de uma visão da tão proclamada “vocação marítima de um povo” que vão muito para além de um discurso centrado apenas numa afirmação de Poder: outras lendas e outras histórias estão lá representadas, como o está a vida de uma Lisboa portuária tão próxima e tão longínqua no tempo, bem como a expressão de lendas que, a seu modo, são o testemunho de que a experiência marítima portuguesa foi, também, trágica em muitos e diversos aspectos — como não podia deixar de ser —, e inscreveu nela fábulas, quantas vezes pícaras, que competem com, e de certa maneira reduzem à irrisão, o discurso oficial a respeito do que foram efectivamente as navegações.
Por maioria de razões, como disse já, à ideia de uma localização física para um futuro museu que trate este tema justapõe-se a ideia de que a narrativa se distribui por diversos pólos: a Ribeira das Naus, o Padrão dos Descobrimentos, a Torre de Belém, o Mosteiro dos Jerónimos, o Museu de Marinha e, complementarmente, as Ermidas de Santo Amaro e S. Jerónimo. Não seria boa ideia fixar um futuro núcleo central museológico nestes dois espaços, ou seja, nas Gares Marítimas da Rocha Conde de Óbidos e de Alcântara, recuperando-os para a cidade e para a sua relação com o rio e com o mar? Acresce a valia da contiguidade dos museus Nacional de Arte Antiga e do Oriente, os quais reflectem e complementam nos seus acervos, por razões óbvias, a contaminação entre culturas que a grande aventura global dos descobrimentos, achamentos e colonizações portuguesas provocou.
Embora classificada como ZEP, o aterro onde ambas as gares se encontram edificadas encontra-se hoje numa situação indefinida quanto ao seu uso, com as zonas de recreio conflituando com a actividade portuária e com uma paisagem geral precária, de definições pobres de arruamento, circulação e sensação geral de um certo abandono e degradação. Seria esta uma oportunidade para ordenar e reconfigurar a zona, sem esquecer que os dois edifícios — Rocha Conde de Óbidos e Alcântara — teriam de ter uma ligação efectiva e rápida entre si, provavelmente ao longo da rua General Gomes Araújo. A afectação de outros edifícios contíguos ao núcleo museológico não seria de excluir.
Uma última palavra acerca da denominação desse futuro museu: concordo, como comecei por expressar, com a ideia de que a palavra “Descobertas” fere susceptibilidades e é incompleta; mas, por outro lado, parece-me também que “Expansão Marítima” é uma forma de tapar o Sol com a peneira, se me é permitida a expressão, e designação igualmente incompleta: a expansão foi marítima, sim, mas pisou terra firme, e em vastas extensões.
Já a eventual designação Museu do Império não me feriria, porque, na sua crueza, abrange tudo, do início à ruína. Não doura a pílula. O seu anacronismo, sendo provocador, desmonta por si só qualquer pretensão de neo-revivalismo: os Impérios são coisas do passado, e os museus tratam do passado, mesmo que se trate do passado instantâneo ou da projecção do futuro. Império é uma palavra que convoca, ou contém, feitos e desastres, proveitos e misérias, conquistas e sujeições, aparato e destrato, glória e sangue, honra e ignomínia, miscigenação e escravatura, posse e perda, guerra e morte.
Se o entendermos, estaremos livres de constrangimentos e poderemos virar a página do imaginário, encerrando esse capítulo denso e complexo.