Esquerda ou Direita unidas | José Gabriel Pereira Bastos | Senhora cá de Casa Okupada

PREFÁCIO (José Gabriel Pereira Bastos)

para que a esquerda (ou a direita) se unissem era preciso maturidade e atenção ao mundo histórico e não apenas os activistas servirem-se dos ‘debates’ para se auto-promoverem ou se engatarem, como o texto mostra. O que não é provável quando N > M e E > I (narcisismo maior do que maturidade e exibicionismo maior do que inteligência).

OPINIÃO (Senhora cá de Casa Okupada)

O ano é 2035, ou melhor, 15 d.R.: depois da Revelação. Toda a superfície do antigo território português foi reconquistada aos fluxos necrófagos do capital numa insurreição fulminante e invencível. Com a implosão do Estado, vive-se a anarquia e a greve perpétua: a população divide-se entre comunas mais ou menos estáveis e grupos flutuantes de afinidades, quase todos dedicados à organização de orgias cada vez mais imaginativas. A ciência, livre dos ditames do complexo industrial-farmacêutico-militar, desenvolve-se de um modo avassalador e em benefício da humanidade: prevê-se que no ano seguinte um grupo de investigadores consiga finalmente ressuscitar a consciência de Arnaldo Matos, que será implantada em milhões de máquinas de combate feitas de cortiça e incumbidas da missão de libertar o planeta da Forma-Putedo. A FUA ainda existe: ocupa-se a fazer manifestações com uma dimensão puramente ritual, o referente esquecido no passado de opressão e miséria. O maior desafio de toda a comunidade do antigo território português já não é político, é logístico: ninguém sabe como tratar e escoar adequadamente as quantidades industriais de canábis que as hortas comunitárias produzem. Continua a escrever-se péssima poesia por todo o lado.

Em 2020, porém, tudo se encaminhava para o ocaso. A Grande Pandemia tinha exposto tragicamente as populações fragilizadas e excedentárias, enquanto a extrema-direita crescia ancorada em bots de Facebook e em grupos paramilitares de polícias do Movimento Zero. Em Dezembro, depois de mais um raide neonazi em Lisboa – que redundou em várias pessoas agredidas e no roubo da mítica tabuleta do RDA “isto não é um bar” -, a comunidade activista reage em bloco: ou seja, discutindo violentamente entre si no Facebook e no Twitter. Um número já diminuído de militantes, todos desavindos entre si há anos, reúne-se pela 37ª vez nesse ano para discutir o que fazer perante a ameaça fascista. Ainda antes do começo do debate, um infeliz militante míope, ao dirigir-se a uma outra militante, engana-se no género desta, o que despoleta de imediato uma discussão de proporções apocalípticas que se prolonga durante horas, sempre com cigarros impecavelmente enrolados apesar da veemência da gritaria. Passados menos de 10 minutos, já nenhum dos presentes se lembra do tema da reunião, pelo que todos se dedicam a fazer acusações referentes a acontecimentos semi-privados dos anos 90 e a fazer a exegese de likes de Facebook em publicações polémicas da véspera. A dada altura, habituados ao desenlace habitual destas reuniões, vários militantes alheiam-se da discussão e começam a seduzir-se entre si.

Por entre o ruído das acusações de “reformismo”, “racismo internalizado” ou “pós-transfobia interseccional”, coberto pela penumbra e pelo fumo de Amber Leaf, o ainda hoje anónimo Profeta pede timidamente para se inscrever no debate, onde já voavam garrafas, revelações da vida íntima alheia e sete livestreams. Quando a sua vez chegou (3 horas e meia depois), levantou-se lentamente. O Profeta pigarreou, desviou a cabeça de um cinzeiro, refutou rapidamente uma acusação de racismo que afinal não lhe era dirigida, abriu a boca e proferiu a frase que mudaria a Humanidade para sempre, a frase que transportava a ideia em que nunca ninguém tinha pensado e que abriu no coração de todos, de súbito, a Revelação:

“Eh pá, tipo, eu pessoalmente acho que a esquerda devia era unir-se”.

José Gabriel Pereira Bastos | Senhora cá de Casa Okupada

Retirado do Facebook | Murais de José Gabriel Pereira Bastos | Senhora cá de Casa Okupada

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