Heterónima e outras demonstrações | Amélia Vieira – 28 Jul 2016 (publicado em Macau Hoje)

VII-1

«A heterónima Pessoana não nasce apenas da multiplicidade do carácter ou de uma forma de fugir a uma Lisboa enfadonha no início do século vinte que, por acaso, até nem o era, dado o clima efervescente da Primeira República onde todas as viragens sociais e culturais se davam à velocidade do vapor. Essa tese cai por terra de tão inexacta que é. Em nós, não cabem, não -todos os sonhos do mundo – muito menos temos a elasticidade mimética de ser conforme a circunstância. Há, sem dúvida, componentes que fazem um homem mais vibrátil na multiplicação de si mesmo. Mas o que a uns parece do efeito da quimera e do desdobramento da personalidade, pode neste caso ter outras origens bem mais profundas.

Pessoa é originário da Covilhã e de um ramo bastante circunscrito. Sabendo-se da sua descendência familiar que partia de cristãos-novos referenciados, ora existe ainda um ramo remoto que vem das duas filhas de António José da Silva, judeu relapso: uma fugida para os Países Baixos de onde não mais regressaria e outra que vivera escondida dentro de casa para o resto da sua vida. É desta que o ramo é descendente. Para se viver, para se ter subsistido, foram precisas muito mais que análises vãs e, para se ter desembocado em Pessoa, foi preciso também muito mais que uma imaginação torrencial, inspiração, génio e “jeito”. Foi ainda preciso ter nas veias aquela plasticidade de saber que mudar de nome, ter vários nomes, até formas de expressão, fazia parte de uma camuflagem em prol da resistência e do salvar a vida. Aqui chegados, e caso os inimigos sejam só fantasmas, a memória nem por isso se torna um elo morto. E foi nesta imensa componente toldada de segredos que ele se deslinda, acrescentando à necessidade a arte de transformar o medo, a arte pura. Aliás, grandes obras nascem destes caminhos que, depois de aparentemente solucionados, libertam para outra área elevando os mesmos argumentos.

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Citando Amélia Vieira

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São tão bonitos os Poetas! Há neles uma luz, uma doçura, uma força…. Aquilo tudo é esculpido pelo espírito, mesmo Baudelaire tinha algo no meio daquela zanga aparente…uma pureza qualquer indefinida. Têm a alma lavada do dejecto sulforoso do mundo… têm asas no olhar e olham-nos como crianças disponíveis, assombradas, mas sempre cheios de amor. São frágeis nas suas lianas mais subtis…são desprotegidos e acreditam que um Anjo os conduz eternamente pela mão. Os dedos enrijecem-lhes de frio e de pavor, por vezes, depois levantam-se e dão, acrescentam a vida das coisas do futuro, estão enamorados da visão alta e bela do para além, e o seu lema é não prestarem atenção, porém, darem testemunho de tudo. São criaturas dentro de si, felizes e dignas de serem contempladas. Estão perto das fontes e não sabem porquê. Só sabem que lhes traz responsabilidades e deveres tão rigorosos como se vivessem em terreno alheio. Amam, e não sabem porque prender é uma forma de pronunciar o verbo que lhes sobe em forma de presente eterno.

Picasso – uma reflexão de Amélia Vieira

A ideia de que um Picasso era um garanhão fustigado por um Eros de predador é quase um insulto ao seu génio. Um homem como Picasso não é um D.Juan nem um ser lascivo. É outro coisa, bem mais rara, mais perigosa, mais fascinante. O que não faltam no mundo são falos andantes… Um homem da dimensão de Picasso sabe que a paixão não é fácil, que o sexo não é fácil, que o mundo não é essa esteira epicurista de nus e contra-nus. Picasso é um homem iminentemente trágico, que está nos locais mais perigosos nos momentos mais difíceis, é um perscrutador, um homem radical. Não brinca aos efeitos estéticos.

Talvez que um tempo desmagnetizado de todo como este confunda um Casanova com um Picasso, mas de facto, nada ha de comum. Estou certa que até para se ser vítima há que ter bons carrascos ou então não vale a pena o estatuto de sacrifício.

Picasso era uma força da natureza, um ser vivo melhorado, um vampiro, também. Mas era Picasso, não o vejo a cometer “crimes” contra o seu estatuto de semi-deus….O prazer? Quem sabe dele? Quem pode aferir que o grau de sadismo com que por vezes se revestiu não é voluptuoso?

Quanto aos genitais, qualquer homem os tem. E não são Picassos. São apêndices de algo que não interessa mais.

Amélia Vieira