Uma Longa Viagem com Vasco Pulido Valente | João Céu e Silva

O balanço de vida de uma das mais polémicas figuras da cultura portuguesa.

«Gostava de me ter dedicado à História do século XIX. Era o que deveria ter feito e nada mais. Deixar uma História completa desse século, que é tão importante para compreender o país que em grande parte ainda hoje somos», confessou Vasco Pulido Valente ao autor, numa das conversas iniciais que compuseram esta longa viagem. Uma viagem que começa com a fuga da família real para o Brasil em 1807 e que percorre mais de dois séculos da História do nosso país, até ser interrompida pela doença e morte daquele que foi uma das mais loquazes, lúcidas e acutilantes vozes da cultura e da comunicação social portuguesa.    

Em mais de quarenta sessões com o autor ao longo de dois anos, Vasco Pulido Valente fez a análise dos acontecimentos mais marcantes da História e da política portuguesa dos últimos duzentos anos: das invasões francesas à implantação da República, da ascensão de Salazar até ao período pós-25 de Abril e aos dias de hoje. Mas também nos fala da relação com Eanes, com Cunhal e, sobretudo, com Mário Soares, que considera o único fundador da democracia portuguesa; dos tempos do cavaquismo e de O Independente e da sua breve carreira na política, travada com a morte brutal de Francisco Sá Carneiro em Camarate. A esse respeito, confessa: «A minha vida foi cortada ao meio com esse acidente.»

Em Uma Longa Viagem com Vasco Pulido Valente, ficamos também a conhecer não só a história como o historiador, o homem através de cujos olhos a vemos, e que aqui faz um balanço da sua vida. Um homem que granjeou muitos inimigos à custa da sua prosa afiada e mordaz e uma das figuras mais polémicas da imprensa dos últimos quarenta anos. 

Uma longa viagem | João Céu e Silva

Não é preciso ser historiador, cronista ou especialista em política para se apaixonar pela Longa entrevista que fiz em 42 tardes a Vasco Pulido Valente e que chega em livro às livrarias dia 25. Basta ter uma pontinha de curiosidade sobre o que tem sido a nossa História nos últimos 200 anos, vista por alguém que não fazia cedências, e estar disposto a não largar a narrativa de VPV enquanto não chegar ao fim.

DESTINOS | Vasco Pulido Valente

Deus sabe que eu nunca fui assim e eu também sei que não fui. Só não sei o que fui. Falta à minha vida ordem e finalidade e, por isso, não posso dizer «fui assim» e, a seguir, «assim». Uma carreira ajudava. Fui tenente, major e capitão; deputado e ministro; assistente e catedrático. Uma vocação ajudava: fui filho, pai e avô. Uma obra ajudava; o meu primeiro livro, o segundo, o terceiro. Tudo isso ou parte disso talvez me permitisse dividir, arrumar, organizar o passado. Até uma grande ambição ajudava: estive mais longe ou mais perto, ganhei mais dinheiro ou ganhei menos. A mim, infelizmente, as coisas sucederam-me sem nexo ou deliberação. Comecei e desisti. Desisti e recomecei. Desejei e não desejei. Dei meia volta ou a volta inteira.

Se me obrigassem a escrever a minha biografia, não era capaz de escrever uma história coerente. Nem sequer com alguma arrumação de superfície. Mesmo pelas regras mais simples: infância, adolescência, juventude, maturidade, velhice. Era velhíssimo na adolescência, adolescente na maturidade e toda a gente me acha simultaneamente infantil e soturno. E não me lembro de períodos fixos, de mudanças drásticas, lembro-me de acontecimentos. De uma noite, à saída de Lineacre College, em Oxford, com muito frio e uma neve brilhante, em que me senti, por qualquer razão trivial, a mais admirável criatura terrestre. Do elevador em que me levaram à sala de operações subterrânea de uma clínica de Biarritz, inerme e nu, como pura carne. De um café vazio, à noite, no Luso, com mesas de fórmica e o chão molhado, onde de repente verifiquei que não havia motivo plausível para sair dali.

Quando penso na minha vida, penso nestes episódios e noutros como estes, que não permitem a separação em «antes» e «depois» e não revelam qualquer curso, honroso ou não. Em cinquenta anos, não notei indícios de um destino manifesto ou de um destino humildemente necessário. o que eu escolhi, ou que me sucedeu sem eu escolher, foi um acaso e eu próprio sou um produto de coincidências improváveis, de circunstâncias efémeras, de emoções sem substância. Os factos consumaram-se sempre por mecanismos obscuros, totalmente estranhos à minha vontade. «O que é que eu estou aqui a fazer?», perguntava eu, desastre após desastre. «Como é que eu vim aqui parar?». Péssimas perguntas.

Durante muito tempo supus que viver bastava, por simples acumulação, para me definir uma personagem e um caminho. Definiu, excluindo, como com toda a gente. O poder físico e o poder intelectual diminuem. Algumas pessoas acreditam que nos conhecem e retiram-nos o benefício de certas dúvidas. E, principalmente, numa sociedade doméstica como a portuguesa, cresce o número dos nossos inimigos, tácitos ou confessos. Se eu me defini, defini-me a coleccionar inimigos. Eles mostram o que eu sou e eu sou o que eles mostram. Mas que as possibilidades se reduzem à medida que se roda para o fundo do funil é um antigo lugar–comum e nem sequer se distingue por ser verdadeiro. Descontado o irremediável (já de si relativo e ambíguo), sobra ainda quase tudo. O caos persiste.

Vasco Pulido Valente | 1941-2020 (21-02-2020)

31 de Outubro a 5 de Novembro, 2016 | Vasco Pulido Valente | in “O Observador”

vascoA “Europa” morreu há muito e hoje os portugueses não passam de um incómodo e de um prejuízo para a Alemanha e para os países que dependem dela. Nem assim Portugal percebe que não é e nunca foi europeu.

Segunda-feira

Dizem que por pressão de Angola e dos negócios do petróleo, Portugal aceitou a Guiné Equatorial (um antigo protectorado espanhol) na CPLP. A Guiné Equatorial é uma ditadura, governada desde 1979 à maneira norte-coreana, por um indivíduo chamado Teodoro Obiang e pelo filho Teodorino Obiang, um gangster internacional procurado pela polícia francesa. Neste paraíso dos direitos do homem continua a existir pena de morte e a máquina de repressão que produz para o pai Teodoro maiorias de 98 por cento dos votos. Muito bem, não se pode pedir perfeição a toda gente.

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