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“Deus é um problema também para os crentes” | ENTREVISTA JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA | ANTÓNIO MARUJO (texto) e NUNO FERREIRA SANTOS (fotografia) 15 de Abril de 2018 in Jornal “Público”
Vivemos numa sociedade de satisfação permanente, diz Tolentino Mendonça. Por isso, precisamos de reaprender a ter sede. O novo livro que reúne os textos das meditações feitas perante o Papa e a Cúria Romana foi anteontem posto à venda. A propósito dele, o autor de A Noite Abre os Meus Olhos diz que a espiritualidade não se pode “confundir com um conjunto de abstracções”. Crer não é “ter as soluções”, mas é “habitar o caminho, habitar a tensão, viver dentro da procura”. Por isso, Deus é um problema também para os crentes. Um Deus que, na configuração cristã, é sobretudo um Deus frágil.
“A fé tem de ser também uma escola do desejo, onde se aprende a desejar, a desejar mais, a desejar melhor, a desejar maior…”
“Quando temos o privilégio de servir, de forma desmedida, também recebemos o tamanho da nossa vida.”
“Deus é um problema para todos, não é só uma questão para os não-crentes, Deus também é uma questão para os crentes. Deus é uma questão que nos une, não é uma questão que nos separa: Deus está em todos, crentes e não-crentes”
“Mais do que estar saciados de Deus, os crentes aprendem os benefícios da sede, a importância de viverem no desejo de Deus, na espera de Deus. Um crente não possui Deus, não o domestica com os seus rituais e as suas crenças”
“Crer não é satisfazer-se, não é ter as soluções nem ter encontrado as respostas. Crer é habitar o caminho, habitar a tensão, viver dentro da procura”
O Elogio da Sede foi o tema que o padre José Tolentino Mendonça propôs ao Papa Francisco, quando este o convidou a orientar os exercícios espirituais da Quaresma para os responsáveis da Cúria Romana – a primeira vez de um padre português. Com o mesmo título, foi anteontem posto à venda o livro (ed. Quetzal) que reúne os textos das meditações que o também poeta e exegeta bíblico propôs ao Papa e aos seus mais directos colaboradores.
No tempo litúrgico que antecede e prepara a Páscoa, os cristãos são chamados a repensar a sua vida à luz da fé que professam. Esse desafio pode assumir a forma de um encontro de reflexão ou meditação, muitas vezes chamado de “exercícios espirituais”, adoptando a expressão cunhada por Inácio de Loiola, fundador dos jesuítas. “Um exercício espiritual é, sobretudo, um momento de encontro, uma viagem ao interior de si, uma abertura ao que pode ser a voz de Deus, um balanço da própria vida”, explicaria Tolentino Mendonça, nesta entrevista.
Foi isso que, durante cinco dias, entre 18 e 23 de Fevereiro, aconteceu em Ariccia, perto de Roma: duas meditações diárias, e o resto do tempo em silêncio, para cada pessoa se confrontar com a reflexão proposta. “O silêncio com que vivemos este retiro podia interpretar-se como uma sede”, acrescentava o padre português.
No livro A Nuvem do Não-Saber, de final do século XIV – que muitos historiadores da matéria consideram “um dos mais belos textos místicos de todos os tempos”, como recordava José Mattoso na edição portuguesa (ed. Assírio & Alvim) –, o autor anónimo escreve: “[À] pergunta: ‘Que buscas? Que desejas?’, responde que era a Deus que desejavas ter: ‘É só a Ele que eu cobiço, é só a Ele que busco e nada mais senão Ele’. E se te perguntar quem é esse Deus, responde que é o Deus que te criou e redimiu, e por sua graça te chamou ao seu amor. Insiste que acerca d’Ele tu nada sabes.”
Foi sobre essa busca e sobre tactear na procura de Deus que, nas suas dez meditações, Tolentino Mendonça se debruçou, mesclando a investigação dos textos bíblicos com as inspirações literárias e artísticas que marcam também a sua obra poética e ensaística. E é essa intersecção permanente que transparece no seu livro. Que tem um único risco: o de se tornar, também ele, uma das grandes obras da mística. A par de obras como A Imitação de Cristo ou o já citado A Nuvem do Não-Saber. Ou a par de nomes como Hildegarda de Bingen, Juliana de Norwich, São João da Cruz, Teresa d’Ávila, Etty Hillesum, Dietrich Bonhoeffer, o irmão Roger de Taizé…
Comecemos por uma pergunta impressiva: o que se sente ao estar diante do Papa, convidado por ele, a orientar um retiro quaresmal?
Sentem-se três coisas. A primeira é uma grande humildade, porque toda a palavra que dissermos é atravessada pela densidade daquela vida, do que ele representa – e poucas vezes na minha vida me senti tão pequeno. Depois, um grande sentido de serviço e responsabilidade: estava ali porque ele me convidou. E por fim, por estranho que pareça, uma grande simplicidade e naturalidade: eu era um padre a prestar serviço a outros padres e era mais um a fazer o que qualquer um pode fazer. Sentia-me a fazer coisas muito normais.
E também a fazer o caminho que interessa ao Papa: como ele escreve no prefácio, as meditações que propôs cruzam o estudo da Bíblia com referências literárias, poéticas, a actualidade e o quotidiano. Há um apelo a uma reflexão que seja também o que o Papa propõe?
Claramente. Quando ele me convidou, disse-me duas coisas: que me sentisse muito livre e que fosse eu próprio. E que só ajudaria com estas duas condições. Aceitei isso com grande verdade, no sentido de que a minha experiência de vida aparece muito reflectida, tal como as minhas leituras ou o que me parecem ser os caminhos do presente e do futuro da Igreja…
Isso é feito num grande diálogo com o magistério do Papa Francisco e o que ele representa, com o impulso reformista que ele introduz a este tempo do catolicismo.
Estes cruzamentos dão-me a medida do concreto. A teologia não pode ser uma ideologia nem a espiritualidade se pode confundir com um conjunto de abstracções. Qual é o contributo da literatura? É trazer uma “concretude” muito grande, é trazer histórias de vida, modelos do vivido, do pessoal, do individual para uma reflexão de conjunto. Nesse sentido, é um papel muito grande, porque é uma espécie de zoom sobre a realidade. É muito envolvente sentirmo-nos dentro de uma história.
A grande vantagem de utilizar o texto bíblico e a tradição espiritual cristã, mas também a antropologia, o cinema, a literatura, a pintura e as artes em geral é permitir uma tradução existencial da mensagem cristã.
E isso é necessário?
Sim. Quando se propõem exercícios espirituais, claramente não é para ensinar doutrina às pessoas. Aquelas pessoas é que me poderiam ensinar doutrina. Por isso é que essa chamada ao real e ao concreto me parecem traços indispensáveis.
O seu livro anterior, O Pequeno Caminho das Grandes Perguntas, acaba a falar de ampliar o espanto como legado daqueles que se amam. Estas meditações começam com o tema “aprendizes do espanto”. Que espanto ou espantos se devem aprender?
O grande perigo, numa viagem interior, é habituarmo-nos à nossa própria vida e a rotina acabar por dominar. É um fazer por fazer, os acontecimentos são mecânicos. Na vida dos padres, por exemplo, há um retiro anual, que o próprio calendário impõe. E, a dada altura, é como se um piloto automático estivesse a comandar a nossa vida e já não fôssemos nós próprios.
O espanto é poder abrir os olhos, poder dar-se conta do que somos, do que está perto de nós, do que está longe. É ganhar um olhar crítico sobre a nossa própria realidade, perceber que muitos gestos, à custa de os repetirmos, se tornam tiques e manias, e se esvaziam da autenticidade fundamental. Por isso, a primeira palavra do retiro é esse “espanta-me”, mais uma vez. Como se pudéssemos ganhar um olhar novo, um primeiro olhar sobre a nossa própria existência. É essa frescura que permite a infiltração do espírito nas nossas vidas.
… E que leva ao tema da sede. Num outro livro anterior, A Mística do Instante, já escrevia que bebemos de muitas fontes mas a sede volta sempre. A que sedes o cristianismo deve hoje dar resposta?
Escolhi o tema da sede porque ele me parece indicar um património fundamental do crer. Crer não é satisfazer-se, não é ter as soluções nem ter encontrado as respostas. Crer é habitar o caminho, habitar a tensão, viver dentro da procura. Nesse sentido, mais do que estar saciados de Deus, os crentes aprendem os benefícios da sede, a importância de viverem no desejo de Deus, na espera de Deus. Um crente não possui Deus, não o domestica com os seus rituais e as suas crenças. Ele vive na expectativa de Deus e da sua revelação que, em grande medida, é sempre surpreendente, é sempre inédita. Por isso, a sede é um lugar necessário no itinerário cristão, que precisamos de revisitar.
A dada altura, falo da necessidade de revalorizarmos mais uma espiritualidade da sede. E percebermos que, mais do que estar a produzir respostas para perguntas que não escutámos dentro de nós e dentro dos outros, o importante é perceber a sede como uma palavra que Deus nos diz. Deus coloca-nos numa situação, em acto, em experiência, mais do que numa montra ou pódio onde a vida já aparece concluída e rematada. O tempo da Igreja, o tempo da crença, é um tempo de inacabamento, de construção, é um estar a caminho, é um fazer-se. A sede desempenha, aí, um papel fundamental. E aí pergunto: qual é a primeira sede?…
Qual é a primeira sede?…
A primeira sede é a sede da sede, viver não na administração das nossas certezas, mas numa espécie de fronteira, numa espécie de limiar, que faz do acto de crer ou do acto de rezar uma forma de atenção: de atenção a nós próprios, de atenção à vizinhança de Deus, de atenção aos outros, à história…
No final do retiro, o Papa disse-me: “Uma das coisas que achei importante foi dizer que Deus tem sede das nossas sedes.” Esse é um bom resumo da proposta que fiz.
Um dos aspectos da atenção aos outros passa por uma das faces da sede espiritual: a solidão. A dado passo, cita uma história intensa do escritor uruguaio Eduardo Galeano, que acaba com a criança hospitalizada a pedir ao médico “diga a alguém que estou aqui”. A companhia e o abraço do outro são necessidades maiores?
São necessidades maiores, também para o clero e para a Igreja, que foram os primeiros destinatários desta palavra. É muito fácil, em todas as condições de vida, experimentarmos a radical solidão do existir e não encontrarmos interlocutores para as grandes questões, para as grandes sedes que trazemos no coração. Essa solidão torna-se uma espécie de peso, de custo existencial, com o qual nos conformamos: vivemos como podemos viver.
São necessários momentos de revitalização na nossa vida, de questionamento mais profundo, de pausa, como os exercícios espirituais podem ser. Momentos que nos ajudem a romper com o conformismo e a ouvir a solidão profunda que temos dentro de nós. Não escutaremos a voz de Deus se não escutarmos também a voz dessa ferida, desse peso de solidão que muitas vezes nos esmaga, que muitas vezes condiciona a nossa esperança, condiciona a nossa alegria e que é preciso olhar de frente e desconstruir.
Fala da relação como um alimento invisível, que passa pela hospitalidade, pela palavra, pelo cuidado e afecto com os outros. Mas, hoje, chamamos amizade a relações com desconhecidos. Como trabalhar a relação, tendo em conta esta realidade?
A grande ideologia dominante, hoje, é o consumo. Já não é tanto uma ideologia política, mas uma transversalidade que faz de nós consumidores de alguma coisa e continuamente estimulados a isso. Qual é o problema da sociedade de consumo? É que ela não suporta a sede, não suporta o desejo. Todos os desejos são para ser realizados no mais imediato possível. A satisfação dos nossos desejos é colocada como uma promessa fantasma ao alcance da mão.
Qual é o problema? É que já não há espaço para grandes sedes, para grandes desejos, porque vivemos numa sociedade de satisfação permanente. E de uma satisfação enganadora porque, verdadeiramente, um desejo que se possa satisfazer de um momento para o outro não é um verdadeiro desejo humano. Por isso, cada vez mais sentimos que não há espaço para que a vida alimente grandes sonhos, grandes paixões, grandes viagens, grandes utopias, grandes generosidades…
Ficamos presos ao imediato…
Isso faz de nós pessoas mais desencontradas consigo mesmas. Esta sociedade da satisfação imediata deixa-nos muito insatisfeitos porque vivemos num mecanismo de viciamento e impulso, e não vivemos por ter alimentado, dentro de nós, de forma paciente, longa, discernida, demorada, um grande desejo, uma verdadeira vontade, um sopro de liberdade, de criatividade. Mas vivemos neste condicionamento.
Isto reflecte-se em todas as dimensões da nossa vida: é assim com as necessidades elementares da vida e é assim com as nossas relações uns com os outros, que acabam por ser, também, de consumo. Acabamos por nos consumir uns aos outros e não há um verdadeiro encontro, uma verdadeira espera, uma hospitalidade autêntica do outro. Diminuímos a nossa capacidade de esperar uns pelos outros: ou é no imediato ou já não funciona. E essa aceleração antropológica – que as tecnologias, os emails, os telefones têm acentuado – seca-nos por dentro e desumaniza-nos. Uma sociedade de consumo é, fundamentalmente, uma sociedade desumanizada.
Este tema traz à memória muitas referências bíblicas: o rio que regava o jardim do Éden, o poço de Jacob, o veado que suspira pela torrente das águas, nos Salmos, o encontro de Jesus com a samaritana, a última frase do Apocalipse…
A Bíblia é um manual da sede. Podemos ver a Bíblia inteira a partir dessa dinâmica da sede e da água, mas de uma água que se acorda dentro da própria sede. “Aos sedentos, eu darei a beber a água viva”, diz Jesus – que é, no fundo, a água do espírito. Quando Jesus diz “tenho sede”, a seguir entrega o espírito.
Isso é alguma coisa que acontece na dinâmica da nossa sede: a nossa sede tem muito a ensinar-nos. Precisamos de confiar mais na nossa sede e na sede do mundo. A Igreja tem de confiar mais na sede do mundo e perceber que essa sede, que está no coração do homem, é aliada de uma procura espiritual mais autêntica, mais radical.
Cita o profeta Jeremias, que diz que o povo cometeu um duplo crime: afastou-se de Deus, “nascente de águas vivas”, e construiu cisternas rotas, que não retêm as águas. Há um discurso cristão que identifica a secularização com o afastamento de Deus. Esta leitura é correcta ou reflecte as muitas sedes das pessoas?
No caso do profeta Jeremias, ele fala dos equívocos e das ambiguidades que fazem parte do caminho. Falar da sede não é um discurso puro nem linear. É um discurso onde está o confuso que também nos habita, o confuso do mundo que é preciso iluminar e purificar. Para mim, é claro que temos de olhar para a secularização e as culturas contemporâneas não como uma barreira para o anúncio de Deus, mas identificando, no coração do homem, aquilo que é o aliado de um discurso de fé, de confiança, de misericórdia. Isso passa por sintonizar com a sede que existe dentro do coração humano. Porque a grande questão é antropológica, existencial. No fundo, trata-se de saber como tornar o discurso de Deus relevante para as nossas sociedades, em grande medida indiferentes, que se consomem nesta espécie de mercantilismo global que nos domina. Ou de como acordar a vida, como acordar um desejo de absoluto, como acordar uma sede de mais, uma sede de santidade, como diz o Papa na exortação apostólica que acaba de publicar.
E como se faz isso?
Valorizando a sede. A sede não é um tópico apenas religioso, a sede interessa a toda a gente. Não somos pessoas se não olharmos com atenção para a nossa sede e não a estimarmos ou potenciarmos. O que nos abre horizontes é a nossa sede, não são as certezas provisórias que vamos encontrando.
É o que diz Saint-Éxupery na epígrafe que coloca no livro: “Se quiseres construir um navio”, detém-te primeiro a acordar nos operários “o desejo do mar distante e sem fim”?
No princípio está o desejo. É esse desejo e essa sede que são o motor de um caminho. Se quisermos conhecer uma pessoa, devemos perguntar que sedes é que ela transporta, que sedes nós permitimos que nos habitem. São essas sedes – que não podem ser a sede de poder, a sede do ter, do dominar, do consumir, da violência, mas a sede de justiça, de solidariedade, de bem, de beleza – que são capazes de nos avizinhar do sentido, da verdade da própria existência. Ignorar a nossa sede é desconhecer-se a si próprio, é ser um estrangeiro da sua própria vida.
Essa reflexão sobre o desejo, que vem desde um dos seus primeiros ensaios bíblicos, As Estratégias do Desejo é surpreendente, na relação com o tema da sede. Quando cita nomes como Emily Dickinson, a dizer que “a água é-nos ensinada pela sede”, ou S. João da Cruz e outros místicos, damo-nos conta de que o desejo não se opõe à razão e ao conhecimento. Pelo contrário, confunde-se com eles…
É bonito ver que o primeiro acto de Deus é o da criação. E da criação individual, de cada um: da criação daquele Adão e da criação daquela Eva e das outras criaturas. Nós não somos cópias uns dos outros, não somos simplesmente uma repetição, uma massa, uma multidão indiferenciada. Pelo contrário: cada um de nós é único, em cada um de nós há uma revelação de Deus que é singular, cada um de nós é uma estação do mundo, é um primeiro dia da história.
Muitas vezes, a religião é uma coisa inodora, virtual. O Papa traz realidade, traz verdade. O cristianismo, com ele, tem cheiro.