UM FRAGMENTO DO MEU “LIVRO DE EROS” E UMA IMAGEM DE EDGAR DEGAS | Casimiro de Brito

Uma das mulheres que melhor me amou nunca a vi à luz do dia. Nem à luz de velas. Entrava no quarto (de um pequeno hotel) à noite, com a luz apagada, com todas as persianas cerradas, e com a luz apagada saía. Assim tínhamos combinado. Costumava dizer-me, como no mito, Nunca deverás olhar-me, se precisares de luz para me ver é porque és cego ou não tenho em mim luz bastante. Tinha. Um corpo perfeito, uma voz alcalina, uma arte indizível ou talvez só essa cantada pelos poetas do amor. “Não podes saber quem sou, nem sequer se te amo.” Amava-me, isso sim, amava-me porque fazia o que fazia com arte e entusiasmo, fundidos com fervor crescente um no outro. Nunca acendi a luz. Aceitei a desigualdade, e penso que só com ela a aceitei: sentindo que, ela, conhecendo-me embora o rosto e o percurso, também desejava desvendar os meus mistérios. Um dia senti que me estava a apaixonar por ela, e disse-lhe. Foi o fim. Disse-me apenas, “Isso seria a nossa desgraça. Vou partir.” E partiu, essa que devia ser a mulher de algum dos meus amigos. Nunca quis saber, nunca procurei saber nada, e talvez agora me leias. Mas conheci de ti fontes que outros não poderão conhecer — porque nesses momentos tu eras uma-comigo, a tua humidade derramava-se em mim, numa dor única e feliz e sei que nunca ninguém te amará como eu te amei. Nem imaginas o que eu daria, não para ver o teu rosto, não para saber quem és, mas para me sentir novamente afogado nas tuas fontes loucas, que nunca mais esquecerei. Onde estarás? O que sentirás quando passas por mim e não te vejo? O que sentirás quando leres isto? Talvez me telefones de novo.

Casimiro de Brito

Retirado do Facebook | Mural de Casimiro de Brito

DIÁLOGO REVOLUCIONÁRIO | Fernando Gomes

— Bom dia, cavalheiro. Em que lhe posso ser útil?
— Bom dia. É aqui que vendem revoluções?
— É sim. De que tipo deseja?
— Olhe, nem sei bem como escolher.
— Bom, há quem as escolha por século, por ano, por mês…
— Muito bem. Pode ser uma de Outubro. É que o Outono é a minha estação favorita.
— Temos duas dessas. Prefere Republicana ou Vermelha?
— Qual é a diferença entre elas?
— A diferença geográfica é cerca de quatro mil e quinhentos quilómetros. A temporal é de sete anos e vinte dias.
— Estava a pensar na diferença de preço.
— Que importa isso, caro senhor? Uma revolução bem feita não tem preço.
— Já vi que conhece bem o produto que vende.
— Assim é, cavalheiro. Sou um profissional, e as nossas revoluções são de primeiríssima qualidade.
— Acho que vou levar uma vermelha, como os cravos. A minha mulher gosta de cravos.
— Aconselho-o, então, a levar uma de Abril e não de Outubro. Pode não ser boa ideia contrariar a sua mulher num assunto destes.
— Pois é… Se calhar é melhor não ligar ao mês e escolher baseado noutras características.
— Talvez queira ver por estilo. Temos a Liberal…
— Sou mais para o conservador, sabe…
— Deixe que lhe diga, cavalheiro, que é a primeira vez que tenho na loja um conservador a pedir uma revolução.
— Admito que tenho uma alma cheia de contradições…
— Quem não tem? Compreendo-o perfeitamente. Talvez precise de uma revolução interior.
— Não, obrigado. Sinto-me bem como sou.
— E que tal estilos menos agressivos? Temos, por exemplo, a Industrial…
— Hum… Tem ar de ser muito pesada.
— Nesse caso, porque não opta por algo mais leve como uma simples revolta?
— Isso não! Comigo é tudo a sério. Quero mesmo uma revolução. E à grande.
— Talvez o cavalheiro prefira escolher por nacionalidades. Temos a Americana, a Chinesa…
— A Chinesa é a Cultural, não é?
— Exacto. E o cavalheiro parece-me bastante culto. Olhe que é uma boa escolha. Garanto-lhe que vai bem servido.
— Também não. Temo que seja muito Mao para mim.
— Então, a Cubana, a Espanhola… Já sei. Se quer à grande, porque não leva uma Francesa?
— Não. Não gosto de guilhotinas. As lâminas arrepiam-me… Até as injecções… Nem lhe conto. Uma vez, nas urgências…
— Compreendo. Talvez o cavalheiro não seja talhado para isto das revoluções…
— Acha mesmo?
— Aqui entre nós, porque não fica simplesmente em casa a gritar contra o governo?

Fernando Gomes

Retirado do Facebook | Mural de Fernando Gomes