Portugal Ressabiado | Carlos Matos Gomes

Em 1972, Mário Soares publicou em França um livro sobre Portugal a que deu o título de «Portugal Amordaçado». Havia, então, um Portugal amordaçado pelo Estado Novo e a sua polícia política, um Portugal amordaçado pela falta de direitos elementares de cidadania, direito à palavra, à representação, direito de reunião, de organização, havia um Portugal amordaçado que não podia falar do colonialismo, nem da guerra colonial, nem na busca de soluções que não fossem a continuação da guerra, havia um Portugal amordaçado pelos grandes patrões da indústria e da banca, um Portugal amordaçado pela Igreja Católica e pelo partido único, a União Nacional.

Havia, de facto, um Portugal amordaçado, mas havia e há um Portugal que gostava e gosta da segurança da mordaça, da tortura, da violência dos Pides, dos assassínios dos opositores, da censura, da União Nacional, dos regedores e autarcas nomeados, dos deputados escolhidos entre os fiéis e os compadres, um Portugal que gostava e gosta das cargas da Polícia de Choque e da GNR, das arruaças dos legionários, havia e há um Portugal herdeiro do ultramontanismo absolutista do século xix, um Portugal miguelista, satisfeito com as ordenações do trono de Salazar e as bênçãos do altar do Cardeal Cerejeira, confortado com as denúncias dos informadores. Havia e há um Portugal agradecido por pertencer a um rebanho, por ter pastor e cão de guarda.

A morte de Otelo Saraiva de Carvalho revelou mais uma vez e de forma exuberante a existência desse Portugal ressabiado com a Liberdade e com a Responsabilidade que o 25 de Abril transferiu para a soberania popular.

Mas, mais, o ressabiamento dos que tocavam uma sineta para chamar um ou uma serviçal, ou mandavam um cabo de ordens arrebanhar uma leva de apoiantes deve-se acima de tudo ao facto de Otelo, além de ter planeado e comandado a brilhante operação militar do derrube do regime da ditadura em Portugal e nas colónias, ter trazido o povo para a história, promovendo uma revolução social, política e económica. Otelo tresmalhou o rebanho que era até aí designado como “Bom Povo”!

É a entrada na Bastilha do povo liberto de controleiros eleitorais, de guias espirituais, de iluminados, como aconteceu nos primeiros momentos da revolução após o 25 de Abril e que Otelo abriu com o COPCON, um anti poder no poder, é o direito, que em Inglaterra originou uma revolução, de os servos falaram com os senhores sem se desbarretar, que os herdeiros dos velhos privilégios, os táticos oportunistas, os videirinhos e os chefes de aparelhos partidários não lhe perdoam, não é a violência, nem as frases mais ou menos bombásticas, nem a incoerência. Com tudo isso convivem bem os críticos de Otelo, são os seus instrumentos de uso corrente! O crime de Otelo foi ter descriminalizado o respeitinho, para citar O’ Neill!

Carlos Matos Gomes

Born 1946; retired military, historian

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