Insubstituíveis e heróis circunstanciais | Carlos Matos Gomes

Jorge Sampaio deixou um exemplo. Um exemplo de santidade ou martírio? Não: um exemplo de decência!

Os cemitérios estão cheios de insubstituíveis. É uma frase feita para querer significar que nem nos devemos dar demasiada importância, nem aos outros, porque o mundo seguirá a sua marcha, independentemente dos nossos trabalhos, preocupações e esforços.

A frase é feita e, como falácia, contem verdade e não a verdade. A questão não é a dos insubstituíveis. A questão é a de que não existimos para nos substituir uns aos outros, mas sim para nos continuarmos, seja por evolução, seja por rutura. Nesse sentido, somos como os corredores de estafetas: tem de existir alguém que, terminado o nosso percurso, pegue no testemunho e prossiga a prova. Ou que parta para outro destino e por outra pista!

Não há insubstituíveis, mas a questão é saber se existe alguém para continuar a corrida. Não há insubstituíveis que devam ser venerados como heróis sem pecado ou mácula, mas julgo que seria importante para a sociedade portuguesa que personalidades como Jorge Sampaio tivessem continuadores no exemplo de singularidade do combate que travaram pela liberdade, pela justiça. Pela forma como questionaram as imposições de um poder que consideravam ilegítimo e como o exerceram quando ele passou a representar a vontade dos portugueses. Personalidades como Jorge Sampaio transmitiam um exemplo de independência, de coragem ao afrontar o estabelecido, o videirismo, a mesquinhez, o servilismo que os torna merecedores de terem continuadores, não substitutos.

Aproveito para recordar Otelo entre os ilustres desaparecidos este ano (Julho) e cotejar o seu papel com o de Sampaio. Otelo foi insubstituível a planear a operação Fim de Regime, foi insubstituível a abrir ao povo as portas do golpe de Estado para o transformar numa revolução, mas tornou-se desnecessário! Jorge Sampaio não. Não foi insubstituível para o golpe de 25 de Abril de 1974, mas foi e continuou a ser necessário nos tempos que se lhe seguiram, até hoje. Logo, insubstituível. Há insubstituíveis e há veneráveis.

Insubstituíveis são aqueles que deixam um exemplo duradouro, que têm uma luz própria, e não aqueles que foram apenas uma boa circunstância da história. Há aqueles de quem se dirá: Foi uma sorte ser ele que lá estava. Ou, o oposto, foi um azar ele estar lá. Foi uma sorte para os portugueses Francisco Costa Gomes ser o general mais graduado no 25 de Abril de 1974. Foi um azar histórico Sebastião ser rei em 1578 (Alcácer Quibir) e Salazar ser chefe do governo em 1951 (integração do Ato Colonial na Constituição), mas parece evidente que quem é insubstituível é quem deixa um exemplo, como Sócrates, que preferiu beber a cicuta e morrer, do que aceitar que lhe cortassem a língua para não poder falar, exprimir as suas opiniões. Veneráveis são aqueles que se distinguiram numa dada circunstância, a quem ficamos a dever um gesto, uma ação.

É verdade que se não fossem determinadas atos, gestos, palavras de personalidades a história não seria a que foi e é. É o caso da inteligência, da beleza e do nariz de Cleópatra na decadência do império romano, ou, para a independência de Portugal, a afirmação de Luísa de Gusmão de valer mais ser rainha por um dia do que duquesa toda a vida. Exemplos entre outros de personalidades que desempenharam um papel único em determinadas circunstâncias irrepetíveis, de que o “entalado” Martim Moniz numa porta de Lisboa ainda transmite uma imagem marcante.

Mas são os que lutaram e deixaram um exemplo de luta pela liberdade, pela justiça, pela igualdade que são insubstituíveis, na medida em que são faróis de princípios em que fundamentamos a nossa existência enquanto seres humanos. Julgo que Jorge Sampaio deixou um exemplo. Um exemplo de santidade ou martírio? Não: um exemplo de decência!

Não há insubstituíveis, mas seria importante para o bem comum que existissem continuadores e que estes se multiplicassem praticando a virtude da decência e da defesa do Bem, porque existe o Bem e o Mal, que serve de exemplo.

Carlos Matos Gomes

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