O erótico na literatura portuguesa | Manuel Frias Martins | in Companhia dos Livros

O professor universitário, ensaísta e crítico Manuel Frias Martins analisa a literatura erótica portuguesa num artigo em que passa também em revista o impacto dos fatores sociais, políticos e religiosos na nossa perceção sobre os valores morais dominantes em cada época.

As práticas censórias da ditadura salazarista, amparadas pela norma clerical que moldou a cultura moral portuguesa, e que continua subterraneamente presente em vários recantos do inconsciente da nação, sufocaram a imaginação erótica e muitas das suas expressões literárias possíveis. Cidadãos “virtuosos”, porque inimigos de representações artísticas do corpo, do desejo e do sexo, ocuparam lugares-chave da cultura oficial ou a ela ligados, e a partir dos quais expulsaram a experiência de Eros, denegando em consequência os múltiplos aspetos e possibilidades artísticas do sexo. Esta é a explicação mais simples, mas também a mais adequada, para a escassez de cultores literários do erotismo em Portugal.

O romance português acolheu muito intermitentemente o discurso do desejo e raras vezes se envolveu com temáticas de ordem sexual. Mesmo assim, quando tal aconteceu foi sempre com os cuidados da «decência» imposta pela normalidade da ordem social e dos respetivos atavios morais. Coube à poesia, graças à sua própria energia de representação mais relacional do que factual da realidade (no caso, da sexualidade), a aproximação imaginativa a regimes eróticos da experiência. E foram as mulheres quem mais avançou (e arriscou) nesse sentido. Tal não surpreende, pois a onda de empoderamento feminino, que inundou as democracias no período a seguir à II Guerra Mundial, encontrou na sexualidade um dos seus núcleos mais dinâmicos de afirmação e na poesia um dos seus regimes mais imediatos de expressão.
Na segunda metade do século XX, a poesia portuguesa sinalizava à distância o discurso florbeliano do corpo e do desejo tornado ponto de vista afetivo de uma relação com o outro. Mas é só no final dos anos sessenta que a credibilidade intelectual do discurso do corpo e do sexo chega a Portugal a partir de um mundo estrangeiro que se mostrava em transformação de atitudes e mentalidades. É Wanda Ramos quem, em 1970, num texto intitulado Nas Coxas do Tempo, radicaliza em termos vocabulares e metafóricos o discurso do desejo sexual, colocando a poesia num plano assumidamente erótico da consciência feminina do sexo e do amor. Em 1986 tive oportunidade de propor e desenvolver estes mesmos temas num livro que, por estas e outras afirmações, acabou envolvido em várias polémicas e contestações. Intitulado 10 Anos de Poesia em Portugal 1974-1984. Leitura de Uma Década (Lisboa: Editorial Caminho), este livro coloca ainda hoje uma importante memória crítica da notável força erótica da poesia de mulheres que se afirmaram ao longo da década de setenta do século XX. Na sequência do livro Minha Senhora de Mim (1971), de Maria Teresa Horta, e marcada por uma aguda intencionalidade corporal e amorosa, irrompe nesta altura a poesia de Olga Gonçalves, Isabel de Sá, Isabel Ary dos Santos Jardim, Fátima Murta, Fátima Maldonado, Rosa Lobato de Faria, Isabel Mendes Ferreira. Mulheres em que eros se apropria da comunicação poética, significando-a acima de tudo pelo lugar da líbido.

Hoje perdeu-se a novidade destas práticas. Hoje vivemos numa cultura global onde o sexo invadiu o nosso quotidiano através da publicidade e dos média, forçando-nos a relativizar crenças e valores morais. Hoje, as áreas representativas do erotismo temático são múltiplas e híbridas, vivendo em grande medida menos do impacto que podem ter no público e mais da escolha e seleção que o público (nomeadamente a crítica literária) exerce em função das suas diversas orientações sexuais. O olhar masculino e heterossexual não desapareceu, mas perdeu a exclusividade discursiva que detinha.

Não invoco argumentos sobre a justiça e injustiça contidas no processo de seleção, heterossexual ou outra, que acabei de referir. Mas a justiça e a injustiça existem e não podemos nem devemos esquecer que existem. Por isso, o que importa destacar, segundo creio, é a qualidade artística das várias obras que são publicadas. Em última instância é o mérito da respetiva linguagem literária que, pelo menos para mim, define o valor de um texto erótico –tal como acontece, aliás, com textos literários com outras temáticas. Contudo, poucas são as obras ditas eróticas cujo mérito estilístico justifica a sua promoção e divulgação. Quase todas aquelas de que tenho conhecimento constituem meros efeitos conjunturais do gosto social, no qual a compulsão pelo sexo substitui quase sempre o interesse pelo trabalho estilístico.

A consequência cultural mais imediata daquela compulsão é a diminuição do interesse literário das descrições sexuais (mais ou menos ficcionadas, não importa). Mas a consequência de maior alcance está, segundo creio, na imposição autoral de que a atenção do leitor se limite aos fantasmas sexuais do próprio leitor. Duplicados no romance em múltiplas cenas de frenesi sexual, esses fantasmas fecham a leitura no interior de universos de prazer e de espermodramas diversos dos quais não há saída a não ser para mais universos de prazer. Curiosamente, o efeito literário destes textos assinala, afinal, uma possível diferença entre o erótico e o pornográfico. Neste último explicitam-se repetidamente as representações sexuais ao ponto de poderem estimular exclusivamente o desejo e a sensualidade de quem lê. Mas mesmo aqui a diferença não é clara, sobretudo se tivermos em conta alguns dos melhores executantes deste tipo de literatura. Penso num dos últimos romances de Casimiro de Brito intitulado Uma Lágrima que Cega (Lisboa: Razões Poéticas, 2018).

Naquele romance o realismo contínuo na representação de cenas sexuais coloca o leitor no limite da aceitabilidade moral ou numa fronteira onde o erotismo de “Uma Lágrima que Cega” está sempre em processo de ser outra coisa que se encontra para além do próprio registo erótico onde o arquétipo fálico predomina. Essa «outra coisa» estabelece as valências do pornográfico que o leitor aceita ou rejeita, mas que, exatamente por isso, desperta uma linha de demarcação na experiência da representação literária do erotismo. No caso que cito, o erótico emerge de uma abordagem estética (e quase mística) dos atos de amor e da paixão estimulada pelo corpo feminino, mas cujo arrebatamento simultaneamente erótico e estilístico se reconhece em imagens como ««a aurora que brilha no clítoris de uma mulher» (p. 100).
Como classificar cenas e linguagem como as da passagem citada? Como classificar o maravilhamento do homem heterossexual com o corpo feminino ao ponto de o desejo de posse nele emergir como ânsia de união com o mistério do prazer sexual da mulher, sobretudo em razão do encantamento masculino com a intensidade e a esplendorosa beleza do orgasmo feminino:
E nada que se compare com o orgasmo da mulher, esse, sim, de natureza mística, como se todo o seu corpo, entregue às mucosas mais secretas, fosse ao mesmo tempo origem e vítima de uma queimadura líquida, radical. Vivi uma dessas cerimónias a teu lado, depois de ter saído de ti e nunca me esquecerei da inveja que senti porque me parecia, porque eu via, a tua mão na minha, deixando-me ficar silencioso a teu lado, que o teu gozo ultrapassava de muito longe o meu. Sim, uma peregrinação mística. (id: 110-111).

Se na Antiguidade as relações sexuais não tinham por si mesmas (nem em si mesmas) qualquer problema moral, a cultura cristã introduziu um método de hostilização da vida ou, nas palavras de Nietzsche, de «hostilidade radical e mortal para com a sensualidade» que acabou por conduzir ao retrato de Deus como inimigo da vida. A ironia do filósofo é arrasadora: «O santo, aquele que mais agrada a Deus, é o eunuco ideal» (O Crepúsculo dos Ídolos). O imaginário moderno, isto é, pós-renascentista, foi evoluindo segundo códigos morais onde o sexo, não ficando necessariamente excluído da representação artística, foi sendo paulatinamente desfigurado na sua potencialidade humana. Só no século XX se encontrou finalmente uma cobertura intelectual satisfatória para as construções do olhar (sobretudo masculino) ávido de prazer e para as figurações estilizadas do desejo sexual (masculino e feminino). Embora sem consenso ideológico geral, tal aconteceu por via de mutações profundas no imaginário social, as quais conduziram à aceitabilidade moral do que se passou a classificar de erotismo.

https://www.jn.pt/artes/o-erotico-na-literatura-portuguesa-14028343.html?fbclid=iwar1dhrqrh6tdfg8jukcypk4vuzoq_ofplx07yegjhapngastrwcynpwi57e

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