Ópera-performance Sun & Sea | Fundação Calouste Gulbenkian | por André Barata

Em Sun&Sea, a praia é uma janela para a sociedade. Vemo-la de cima e são muitas janelas. Os pensamentos de praia que ocorrem aos veraneantes são umas tantas, a compor um libreto cantado. Ouve-se e vê-se desigualdade, frivolidade, indiferença, compromisso político, encantamentos, diversidade, os corpos a ocuparem-se gestos de afirmação. Os livros ou revistas que eles lêem, o que comem, como se deitam na praia, no que se deitam são outras tantas janelas.

A praia é um caleidoscópio de presenças tácitas, murmúrios para dentro, da sociedade, apresentados sob o mesmo sol, a dividirem o espaço exíguo com espreguiçadeiras, toalhas, esteiras, cangas. Poderia ser uma distopia, ou a imagem dela. Não faltam razões. Nem um cão. E, no entanto, quando termina a ópera resistimos a sair. Já nos despimos alguma coisa, a entrar naquele tempo que conhecemos da praia, que dura o que o Sol der em calor. Talvez a utopia não esteja à distância da praia mais próxima, mas há ali uma força de partilha do Sol e daquele tempo que pode derreter aquela exiguidade que escancara o outro lado das janelas.

Haja praia para todos…

André Barata

Do perigo de pensar e de ler os tempos | Carlos Matos Gomes

Julgo que nós, os humanos, temos a convicção de que nos distinguimos das outras espécies e principalmente dos outros semelhantes porque pensamos. Não sei se essa convicção resiste a um pensamento mais frio. Pensamos individualmente, mas esse pensamento, que nos dota de individualidade, é fruto da necessidade de tratarmos da nossa vida, de sobrevivermos e está então mais próximo dos instintos básicos do que da racionalidade.

Contudo, desde muito cedo somos induzidos pelos que nos cercam a acreditar sem pensar, a acreditar que temos de pensar coletivamente porque nos unem referências e projetos de vida comum e a coesão da sociedade é essencial para a sua sobrevivência em competição com as outras. A convicção de que é natural numa dada sociedade todos partilharem no essencial dos mesmos pensamentos tem expressão em slogans muito difundidos, «a união faz a força», «e pluribus unum» (entre muitos, um), ou dos mosqueteiros: um por todos, todos por um e até o Deus, Pátria e Família.

No entanto, quando ouvimos líderes de grandes nações, personagens do tipo de Trump, ou de Bolsonaro, de certos bispos católicos, ou pregadores evangelistas, aytollahs e rabinos, de certos oligarcas como Elon Musk parece ser legítima a dúvida sobre a existência de um pensamento entre os humanos. Essas personagens comportam-se de acordo com um código próprio de outra espécie, das que se atiram a tudo o que brilha — caso dos espadartes — e a tudo o que mexe no seu raio de ação — caso dos toiros.

A existência dessas personagens e da multidão de fiéis e crentes que os seguem e se identificam com eles justifica que, enquanto céticos, nos interroguemos se será natural existir um pensamento coletivo em sociedades de estruturas complexas, hierarquizadas, social e politicamente desiguais. Ou será o pensamento coletivo uma construção artificial para facilitar o domínio de um ou de uns grupos sobre a sociedade, destinado a fazer parecer natural o que é uma ideologia de sujeição?

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