Por ocasião do Dia Mundial da Filosofia | André Barata

17-11-2022 | Notas soltas

Ao contrário das ciências, a filosofia não é definida por um objecto nem por um método. Na verdade, revela-se parcialmente nessa diferença. Para a filosofia, o seu método, em vez de ponto de partida, é questão e resposta a que se chega em cada proposta original. E o seu objecto pode ser qualquer um, nada havendo no real reconhecível que se possa dizer à partida filosoficamente inapropriado. Desde que a fenomenologia tomou um cocktail de apricot sorvido à mesa de uma esplanada entre amigos e o tomou com um bom tema de reflexão fenomenológica, nem o mais mundano no mundo desinteressa à filosofia. Como tudo pode ser arte, tudo pode ser filosofia.

Levada a sério a radicalidade bem-querida do seu questionar, a filosofia tem necessariamente de se fazer parte questionada. Por princípio, a pergunta “o que é a filosofia?” é uma pergunta filosófica e filosoficamente incontornável. O que torna a filosofia uma noção aberta e que não se deixa enquadrar. Além disso, uma noção contingente, que depende do acontecimento intelectual de se pôr em questão. Mas, tudo isto faz parte da própria indefinição que caracteriza, de forma necessariamente contingente, a filosofia.

E, contudo, a contingência história perturba a filosofia. Por exemplo, na sua Introdução à Antifilosofia (2009), Boris Groys escreveu que a filosofia é raramente praticada neste tempo de hoje, em que prevalece um saturado mercado de verdades. Como tudo passou a poder ser arte, também tudo passou a poder ser filosofia. O que parece muito – tudo poder ser filosofia – é afinal pouco: trata-se de um tudo pouco disponível, condicionado, até à exaustão dos praticantes, pelo formato da produção e do valor de mercado. Como temos uma anti-arte temos uma anti-filosofia, e ambas deslizam para um lugar de deserto. Não será a arte que se obceca a refutar incessantemente qualquer definição dela mesma um desses exercícios alucinatórios de novidade sem o novo? Não será exactamente assim também com a filosofia, em desenfreada produção de conceitos que se esvaem na própria sofreguidão da atualidade? Já se fez arte e filosofia, mesmo na pobreza; agora, que aderem ao regime da produção de valor, arte e filosofia arriscam a pobreza.

Ou, pelo contrário, não serão a arte e a filosofia os últimos lugares de sentido em que testamos a capacidade de fazer sobrevir o estranhamento que rompe com o banal, com a simples transmissão do movimento que nada mais deixa acontecer? E não vale esta tensão, e inerente ambivalência, para desafiar hoje especialmente a filosofia e a arte?

A filosofia tem de persistir na ordem do sentido que fazemos das coisas como a possibilidade de começar. As ciências progridem, diferenciam-se, acumulam o adquirido. Apesar das revoluções científicas, nelas ressai o passo a passo e ainda bem. Pelo contrário, a filosofia, de que tudo pode fazer objecto e a cada momento filosófico principia método, não tem nada por adquirido e por isso, de mãos nuas, cultiva o vai-e-vem por dentro da sua história, como se tudo nela permanecesse actualíssimo. Paradoxalmente, a contingência da filosofia é a sua garantia de uma relação para sempre.

Se as perguntas filosóficas são radicais é porque relevam a filosofia como possibilidade, sempre a preservar, de voltar ao começo. Na filosofia, tem de estar em causa a possibilidade de pôr de novo tudo em causa, como uma madrugada.

Esta radicalidade, que é a do poder voltar ao começo, ou simplesmente a do acontecimento do nascer, está hoje ameaçada, cada vez mais cercada e diminuída, por condições que pré-estabelecem os modos como existimos e coexistimos. Um design vai substituindo a contingência, até na biologia do nascimento, cada vez menos coincidente com a ontologia do nascer. As crianças nascem, mas um dia compraremos com dinheiro velho toda a individualidade biológica que tragam ao nascer, física e psicologicamente.

Fala-se de fim do mundo, apocalipse, mas realmente aquilo que nos ameaça não é menos o fim do princípio do mundo, génese. Pode dizer-se que o apocalipse começa com o fim da génesis.

Voltemos ao princípio, de novo, e com urgência. Na sua origem etimológica grega, a filosofia colocou-se aquém do saber, amante dele por reconhecer não o possuir. O seu carácter crítico, incansável no debate argumentado, na procura da sua consistência, do seu ponto de iluminação, prende-se com esse reconhecimento, que passa pelo que Sócrates chamou maiêutica e que é como um nascer para um relacionamento com o saber. A renúncia à posse do conhecimento foi a possibilidade de com ele estabelecer um relacionamento. A esta luz, a mais teorética das actividades tornou-se, afinal, uma praxis da relação com a theoria, a pedir, por isso, uma ética, um escrúpulo. No seu movimento fundamental, a filosofia não é uma ciência ou um conjunto de teorias conservadas ao longo da sua história, mas um saber relacional com a ciência e a teoria em geral.

Mas, o que pode ser entendido como uma renúncia face às ciências deve ser, também, percebido como uma potência, de novo associada à maiêutica do nascimento. O assunto da filosofia são questões, até questões sobre como questionar, e não tanto respostas, a sua originalidade é a novidade de um modo de questionar, uma perspectiva nova sobre o mundo, que apela a novas respostas. Muito à semelhança da arte e a sua potência de propor novas formas de perspectivar, em vez de extrair rendimento de uma perspectiva. Mas não sendo uma ciência, a arte da filosofia convida à ciência. Não diz verdades porque não dá respostas, mas incita-as voluntariosamente, ao ponto de o fazer contra o seu interesse: uma questão deixa de ser filosoficamente interessante quando lhe é dada resposta. Permitindo mais um paralelo, é como a obra aberta de que falava Umberto Eco – a filosofia é um conjunto de questões que permanecem abertas como uma obra literária. Algumas encerram-se. Mas se quiséssemos formular um critério de demarcação seria esse: as questões realmente radicais, principiais, ou madrugadoras, nunca saem do livro da filosofia.

A filosofia como obra aberta é um lugar onde se cultivam essas questões abertas, as que vão permanecendo assim, mas também as novas, que surgem na experiência de perplexidade que vamos fazendo do mundo em que estamos. O espanto (thauma) é a única origem da filosofia, dizia Sócrates em resposta a Teeteto, no diálogo homónimo de Platão. E, como é sabido, é nessa experiência que Aristóteles funda, no livro alfa da Metafísica, a origem da filosofia, seja nos homens do passado seja nos seus contemporâneos. Este espanto diante do mundo renova-se com as metamorfoses do mundo que a história da humanidade tem produzido, sendo delas actriz e em maior ou menor medida autora.

Há, contudo, uma pretensão cada vez mais disseminada de que entendida profissionalmente a filosofia deve distinguir-se pela capacidade de formalizar logicamente os argumentos. Eu discordo desta perspectiva. Quem o faça faz muito bem, é uma maneira como outras de fazer filosofia. Já quem o exija, ou o tome como critério de demarcação de filosofia praticada a sério, está, a meu ver, a incorrer numa modalidade de fetichismo que resulta, intencionalmente ou não, em estreitar o campo do pensamento filosófico.

As analogias têm um valor heurístico poderoso: fazem-nos pensar o sentido de uma porção da realidade a partir do sentido que fazemos de outra porção da realidade. Por exemplo, o uso exigível de lógica no pensar filosófico é como o da competência gramatical nos falantes de uma língua. Com esta analogia, a presunção é a de que a competência lógica em filosofia é indispensável mas não obriga ao conhecimento explícito da lógica nem, por maioria de razão, à sua explicitação. Do mesmo modo que a posse de competência gramatical não obriga ao conhecimento explícito da gramática, podemos ter filosofemas extraordinariamente interessantes cuja estrutura lógica não está explanada. E seria um estreitamente terrível do campo da filosofia se os rejeitássemos. Só não seria mais terrível porque, mesmo que se perdessem para o reconhecimento entre os que praticam filosofia, decerto não se perderia para todos os demais que não se importam assim tanto com a rotulagem, a expertise e uma certa deriva profissionalizante da filosofia que tem o seu quê de paradoxal.

O ponto importante é que a logicidade do pensar filosófico, a sua sistematicidade, a sua estrutura argumentativa evidenciável, são factos relativamente incontestáveis. Na verdade, a sua contestação não seguiria outro caminho que não fosse o de uma contradição performativa. E deste facto segue-se que ser professor de filosofia deve obrigar ao conhecimento explícito da lógica e a competências de análise argumentativa que não dispensam a enunciação. Simplesmente ser professor de filosofia não é o mesmo que ser autor de pensamento filosófico. A evidenciação da estrutura argumentativa não torna melhor, mais sério, mais profissional, um pensamento filosófico. Torna-o mais claro, precisamente algo que se pode incluir nos deveres profissionais do ensino. É certo que se espera que o professor de filosofia pratique também filosofia e é certo que se pode esperar de um filósofo que pense explicitando a estrutura lógica dos seus argumentos, mas nenhum destes dois dados compele a nada. Muito menos uma desvitalização do espírito crítico pela sua conversão em uma prática disciplinada de explicitação da estrutura lógica dos argumentos. A disciplina e o método devem fazer entre si tanta diferença como a que Fernando Gil fazia entre a ingenuidade e a inocência. Em ambos os casos, algo aproxima, mas verdadeiramente afastando. A disciplina do pensar domina e diminui o sujeito pela regra que sobre ele se impõe como um constrangimento; o método, pelo contrário, lança, pela regra, o sujeito numa aventura sem destino definido à partida, movida pela inocência.

Mas formas de antifilosofia são muitas. Há também quem celebre a figura do filósofo sobretudo em quem articule com muita finura o senso-comum constituído sobre as questões mais gerais da vida, da comunidade e do seu sentido, por vezes na proporção da sua capacidade de se prestar ao papel de entretenimento intelectual. Contudo, se é para honrar a tradição socrática, não se esperaria dele exactamente o oposto, que provocasse desassossego nas certezas, em vez de as confirmar? Onde falta a cultura de prática filosófica – que não é o mesmo de erudição sobre filosofias –, onde a filosofia é frágil a ponto de se refugiar no academismo, no logicismo, no eruditismo, fica a esperança de que quaisquer outros, os mesmos incluídos, a possam fazer, além de todas as formas por que a convencionamos. Como vegetação ruderal.

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