Carlos Esperança: “Todas as religiões são igualmente falsas e nocivas” | 12 de Fevereiro de 2014

Presidente da Associação Ateísta Portuguesa questiona ligação do Estado à Igreja Católica.

O presidente da Associação Ateísta Portuguesa já foi católico e ainda não conseguiu a anulação do batismo. No entanto, o que mais inquieta Carlos Esperança, de 71 anos, ex-professor primário e reformado de uma farmacêutica, são os laços entre o Estado e as religiões.

A religião continua a ser o ópio do povo?   

Não diria que é propriamente o ópio do povo, mas é frequentemente um detonador de ódios. Teria dúvidas em usar essa frase de Marx, mas também não a repudio, mesmo sem subscrever o marxismo.

E acredita que Portugal seria um país melhor sem religião?

A Natureza tem horror ao vazio. Se não tiver esta religião, arrisca-se a ter outra. E nunca se sabe se a outra não é pior.

Quer isso dizer que a Igreja Católica é um mal menor?

Se nos circunscrevermos apenas às religiões do livro, diria que no Protestantismo há níveis de tolerância maiores do que no Catolicismo. Mas não em todo. Se me falar no Calvinismo ou no Protestantismo Evangélico que hoje domina o Tea Party dos EUA, aí tem níveis de agressividade maiores. E o Catolicismo não é ele próprio homogéneo. Entre aqueles que se fazem pregar na cruz, num ritual de automutilação em contexto católico, e seitas radicais, como o Opus Dei, os Legionários de Cristo e a Comunhão e Libertação, tenho dificuldade em dizer qual é a pior e qual é a melhor. No fundo, diria que todas as religiões são igualmente falsas e nocivas.

No entanto, a nossa civilização judaico-cristã está fundada nessas religiões.

É verdade, mas nasceu da síntese de culturas anteriores. Devemos, no meu ponto de vista ateu, muito mais ao Iluminismo e à Revolução Francesa do que propriamente ao Catolicismo. E diria que a cultura greco-romana é indiscutivelmente importante para aquilo que somos.

O prazo de validade do Cristianismo já expirou?

Os deuses acabam, mais tarde ou mais cedo, por fazer parte da mitologia. É muito natural que, dentro de séculos ou de milénios, o Deus judaico-cristão seja estudado na mitologia, como Osíris, Zeus ou Neptuno. Mas não sou profeta. Uma coisa que os ateus não são é profetas. Enquanto os crentes estão cheios de certezas, os ateus estão crivados de dúvidas.

Nunca sente falta das certezas que os crentes têm?

Não, apesar de ter tido uma educação católica, diria que terrorista, numa pequena aldeia beirã, com catequistas que atribuíam o pôr do sol a um sinal de Lúcia, e diziam que os comunistas e os judeus iriam matar os cristãos – num anti-semitismo primário, de pessoas quase analfabetas, mas que sabiam todo o catecismo, e nos ensinavam a debitá-lo, como hoje se faz nas madrassas com o Corão.

Chegou a ser um católico convicto?

Até aos dez anos, seguramente. Enternecia-me muito com o sofrimento de Jesus. Dos 10 aos 14, quando fui para o Liceu da Guarda, deixei de frequentar a igreja, salvo uma vez por ano, pois era mais ou menos obrigatório fazer a confissão e a comunhão na Páscoa. Éramos induzidos a rezar o terço às sextas-feiras, mas nunca fui. Parece que a Lúcia tinha mandado rezar o terço, e os indivíduos obedeciam-lhe, como a Salazar, e com igual dedicação. A partir dos 14 anos deixei de acreditar em seres hipotéticos.

Que valores defende a Associação Ateísta Portuguesa?

O nosso código de conduta é o respeito pela Declaração Universal dos Direitos do Homem. E, no campo cívico, o respeito pela Constituição da República Portuguesa, que será igual se for revista por dois terços dos deputados. De resto, cada ateu é ateu à sua maneira. Caso contrário, tornamo-nos uma igreja e teremos as provações das religiões. A Albânia foi o único caso de ateísmo obrigatório. Por paradoxo, o ateísmo foi religião de Estado graças a Enver Hoxha [ditador comunista], que era um psicopata.

Os ateus não compartilham a crença no primado da Ciência?

O ateísmo é uma opção filosófica assumida por quem se sente responsável pelos seus actos, por quem preza a vida – a sua e a dos outros. E cultiva a razão, confiando no método científico para criar modelos de realidade. E são pessoas que não remetem a questão do Bem e do Mal para seres incertos, nem têm esperança na existência de uma vida para além da morte.

Consegue entender pessoas que defendem o Criacionismo como explicação para a origem do Mundo?

O Criacionismo não tem a mínima base científica. Não era preciso ser reduzido a cacos pelo Evolucionismo. Não resiste ao mais simples critério de análise científica.

Mas os criacionistas dizem muitas vezes que também não é fácil comprovar o Evolucionismo…

A fé que os salve… A Teoria da Evolução das Espécies não explica tudo, mas acabou por demolir a religião. A partir daí, os movimentos ateus e agnósticos ganharam muita força. E, embora a crise possa fazer regredir, assiste-se a uma progressiva secularização.

Desde que há câmaras fotográficas e de filmar, o número de aparições divinas diminuiu…

É verdade. O sol dá menos cambalhotas, há menos virgens saltitantes, de azinheira em azinheira. Apenas a indústria dos milagres parece continuar próspera.

Mas contra essa, a avaliar pelo que fez com os vendilhões do templo de Jerusalém, até Jesus Cristo se insurgiria…

Uma coisa é Jesus e outra é Jesus Cristo. Se admitirmos a figura histórica, comprovada cientificamente, ele nasceu e morreu judeu, sem saber que era cristão. O Cristianismo nasce da primeira cisão conseguida do Judaísmo, feita por Paulo de Tarso, ganhando relevância com Constantino, para servir de cimento ao Império Romano. Eis como uma seita se transforma em religião.

A vossa associação defende restrições à prática religiosa?

Muito pelo contrário. Defendemos que a liberdade de crença, de descrença, e de anticrença, têm de estar ao mesmo nível. Defendemos muito menos o ateísmo do que a laicidade. O Estado não pode ser ateus, pois um Estado ateu é totalitário. Eu seria um adversário do Estado ateu.

Admitem que antecedentes como o anticlericalismo da I República não são o caminho a seguir?

Se ler os nossos comunicados, não há nenhum que revele anticlericalismo, embora ninguém possa  ser bom juiz em causa própria. Mas é evidente que se considerar anticlericalismo uma luta e uma pedagogia contra o obscurantismo e a superstição, encontra toneladas de ateísmo na Associação Ateísta.


O Estado devia cortar completamente laços com as igrejas?

Do nosso ponto de vista, a Concordata não devia existir, e a Igreja Católica seria respeitada, como qualquer outra. E há aspectos que eu não percebo: quando atitudes xenófobas, racistas e de violência são preconizadas pelas igrejas, há uma benevolência de que não gozam os partidos políticos.

A questão dos feriados religiosos é um dos principais sinais da influência da Igreja Católica no Estado?

Não sei hierarquizar, mas houve da parte do Governo uma cedência extraordinária à Igreja Católica. Tanto mais lamentável quanto, antes de a Igreja definir quais eram os feriados de que abdicava – como se os feriados fossem seu direito -, prescindiu facilmente do 1 de dezembro e do 5 de outubro, que são dois feriados identitários. Numa altura em que se perdeu o serviço militar obrigatório – e chamo-lhe perda, tendo sido adversário da Guerra Colonial -, e o próprio hino e a bandeira começam a perder algum do seu valor simbólico, resta-nos a língua, muitas vezes mal falada e mal escrita, como única identidade do país. Admitindo que era preciso cortar feirados, havia outros que não têm a carga simbólica da Restauração da Independência e da Implantação da República. Alguns feriados religiosos nem os próprios crentes sabem o que significam.

Outra das vossas lutas é a anulação dos baptismos, o que também se aplica no seu caso.

O que nos choca não é o baptismo, que é irrelevante para quem não se revê na Igreja. Era uma obrigatoriedade no regime clerical fascista, mas hoje representa menos do que o sarampo. O que incomoda particularmente a Associação Ateísta Portuguesa é a chantagem que a Igreja Católica faz, com a percentagem que se atribui de católicos, para obter benefícios indevidos. Podendo-se pedir a apostasia [anulação do baptismo], deveriam ser riscadoos do número que os católicos usam para assumirem uma importância que já não têm.

Compreende que uma organização queira manter membros contra a sua própria vontade?

Considero que é prepotência. Mas tenho 71 anos e sou do tempo em que quem casasse canonicamente não se podia divorciar. Os filhos de mãe incógnita eram apenas filhos naturais de um homem  casado, que não se podia divorciar, mas pretendia assumir a paternidade. Nesses casos, a mãe não podia assumir a maternidade e, se o casal se separasse, não tinha direito a ver o filho. E conhecemos todos o caso de Sá Carneiro, que vivia em mancebia, como se dizia então, quando estava com uma excelsa senhora, Snu Abecasis.

É um caso curioso, pois adversários políticos de Sá Carneiro, alegadamente progressistas, usavam essa relação como arma de arremesso político…

Foi uma vergonha. Ele viveu com muita dignidade com a segunda mulher, que o acompanhou na morte. Foi uma situação iníqua, que a Concordata criou. E só não temos essa Concordata, se calhar, porque Salgado Zenha, quando foi ministro da Justiça, exigiu que o divórcio fosse permitido para os católicos, sob pena de denunciar a Concordata. Ainda hoje procuram que o divórcio se torne mais difícil para quem casa religiosamente.

O Estado deveria impedir o baptismo de menores de idade?

A Associação Ateísta não tem nenhuma decisão tomada sobre esse assunto. Pessoalmente, tenho algumas dúvidas sobre as proibições. Se entrarmos por aí, temos de proibir que os pais inscrevam as crianças num clube de futebol ou numa associação qualquer. Não me parece que a liberdade dos pais possa ser cerceada. Nós é que não aceitamos menores de idade. Recebemos várias cartas, curiosamente mais de jovens do sexo feminino, naquele período da adolescência em que há animosidade contra os pais e a educação, mas não aceitamos. Há tempos recebemos uma carta comovedora, de uma miúda de 16 anos que tinha uma irmã pouco mais velha com cancro, e a mãe obrigava-a a ir à missa para rezar que a irmã se curasse. Escrevi-lhe um mail muito ponderado e grande, a pedir-lhe que compreendesse o acto da mãe não como uma atitude lógica e sim afectiva. E disse-lhe que tinha muito tempo para fazer a sua autodeterminação religiosa ou arreligiosa, pois opções desse tipo não se tomam por razões emocionais. Mais tarde ela agradeceu-me.

Já pensaram seguir o exemplo das Testemunhas de Jeová, e andar pelas ruas a falar com as pessoas sobre as vantagens do ateísmo?

(risos) Não pensámos e garantidamente nunca bateremos à porta de ninguém a anunciar a boa nova de que Deus não existe. Se alguém me disser que passou a ser ateu, é como se me estivesse a dizer que aderiu a uma corrente filosófica ou estética qualquer.

Também não se revê quando dirigentes da Associação Ateísta partilham nas redes sociais textos e imagens anticatólicos?

Não. Se for à minha página de Facebook, que está aberta a toda a gente, vê que não é uma página ateia. É frequente tratar temas religiosos que interferem com a actualidade. Há anos que venho dizendo que temos na Europa uma tolerância excessiva com aquilo a que chamam Islamismo moderado.

Sendo um homem cheio de dúvidas, põe a hipótese de um dia vir a encontrar Deus?

Nunca encontrarei, com certeza, pois Deus é uma criação humana. O Antigo Testamento é um livro da Idade do Bronze, de matriz hebraica. Tem um Deus à imagem e semelhança do homem: vingativo, violento, xenófobo, misógino. Daí derivaram a Tora, o Novo Testamento e o Corão, numa cópia grosseira do Cristianismo, com o mais implacável dos monoteísmos, servido por um carácter guerreiro que procura impor o Islão a todo o Mundo.

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