UM ANO DE ESTUPIDEZ HUMANA | Miguel Sousa Tavares in Expresso, 24-02-2023

Um ano depois, a Ucrânia, sobretudo as suas pequenas cidades e aldeias do interior, continua a ser paulatinamente devastada e nem Putin conseguiu a rápida vitória que teria previsto nem a NATO conseguiu, por interposto Zelensky, correr com os russos da Ucrânia.

No terreno, a guerra de artilharia levada a cabo incansavelmente por ambos os lados, e sem saída militar à vista, é mantida, do lado russo, pelo envio constante de cada vez mais soldados para a morte e, do lado ucraniano, por uma tão persistente exigência de mais armas ao Ocidente que se atingiu a situação jamais vista de exaustão de munições nos arsenais da NATO.

Entretanto, a continuação da guerra devora economicamente a Europa e num só dia gasta-se 10 vezes mais em armas na Ucrânia do que aquilo que seria necessário para acorrer a oito milhões de sírios que dormem ao relento e morrem de fome e frio, sem auxílios internacionais, depois do terramoto de há três semanas.

Mas, sintetizando aquilo que é a voz comum de uma Europa “unida como nunca”, decretou há dias o nosso António Costa que “a paz só é possível com a vitória da Ucrânia e a derrota da Rússia”.

Mas o que será essa esperada derrota da Rússia? A retirada de todos os territórios conquistados nesta invasão — seguramente que sim, que é exigível; a participação na reconstrução da Ucrânia, sim; a entrega à justiça dos responsáveis por crimes de guerra, como os de Bucha, sim. Mas também a renúncia aos Acordos Minsk II assinados pela Ucrânia? A devolução da Crimeia, que por breves 23 anos numa história secular e por descuido de um irresponsável chamado Ieltsin, pertenceu à Ucrânia independente?

A aceitação da Ucrânia como membro de pleno direito da NATO e também da Geórgia e uma base americana em Odessa? Ou a derrota militar total no terreno dos exércitos russos, custe isso o que custar aos ucranianos e sejam quais forem os riscos de escalada envolvidos?

António Costa e os seus iluminados pares acreditam mesmo que a “solução pacífica” estará em conseguir fazer sair a Rússia, esmagada e humilhada, da Ucrânia?

E, se bem que seja este o único horizonte de esperança que estes líderes europeus têm para nos oferecer para o próximo ano, há coisas curiosas e contraditórias nesta guerra, onde alguns espíritos, outrora mais lúcidos, comparam a invasão russa à “barbárie nazi” e insistem que não há outra solução para a paz que não a guerra.

Ora, reparem: esta é uma guerra onde, a todo o tempo, os dois lados trocam entre si prisioneiros de guerra; onde um dos lados, a Rússia, permite ao outro que continue a escoar o grosso das suas exportações — os cereais — através de portos no mar Negro, que lhe seria fácil bloquear, ao mesmo tempo que viu as suas exportações de gás para a Europa serem definitivamente encerradas através da sabotagem dos gasodutos civis Nord Stream I e II, numa operação que, sendo “nossa” e não “deles”, não pode, obviamente, ser classificada como terrorismo; onde, apesar da destruição causada pelos invasores, as principais cidades da Ucrânia e, sobretudo, as cidades cuja história está intimamente ligada à da Rússia, Kiev e Odessa, permanecem fundamentalmente intactas e com uma vida tão normal quanto possível em tempo de guerra: a “barbárie nazi” não tocou em Odessa, onde 60 mil soldados russos morreram na II Grande Guerra para a resgatar dos nazis, nem em Kiev, onde todos os líderes europeus se passeiam livremente e Joe Biden foi reafirmar ao “assassino” Putin que não tem nada a negociar com ele, depois de o ter cautelarmente avisado de que iria ali fazer uma corajosa “visita-surpresa”.

Dez pacotes de sanções à Rússia puseram de joelhos a Europa, mas não a Rússia e, menos ainda, os Estados Unidos, e deixaram de fora os preciosos diamantes da praça de Antuérpia, e Boris Johnson, o grande campeão da solidariedade ocidental para com a Ucrânia, exibe-se pelo “mundo livre” a expor as virtudes da continuação da guerra sem fim ao preço de 200 mil euros por conferência.

Mas se mesmo em plena guerra, e apesar dela, é possível estabelecer acordos destes, não seria possível, havendo um mínimo de vontade séria, de lançar bases exploratórias de uma negociação de paz?

Sim, não tenho dúvidas, Vladimir Putin toma-se por um novo czar. Eu, se fosse russo e habitasse no Palácio de Inverno de S. Petersburgo ou no de Tsarskoye Selo e se conhecesse a história da Rússia imperial, também era capaz de sofrer da mesma patologia.

Mas tão culpado é o doente como os que se aproveitam da sua demência. Só passou um ano e ainda é cedo; por ora, conhecemos apenas os inacreditáveis erros de avaliação e estratégia de Vladimir Putin; um dia conheceremos toda a história por detrás deles. Oxalá ainda valha a pena.

Deixe uma Resposta

Preencha os seus detalhes abaixo ou clique num ícone para iniciar sessão:

Logótipo da WordPress.com

Está a comentar usando a sua conta WordPress.com Terminar Sessão /  Alterar )

Imagem do Twitter

Está a comentar usando a sua conta Twitter Terminar Sessão /  Alterar )

Facebook photo

Está a comentar usando a sua conta Facebook Terminar Sessão /  Alterar )

Connecting to %s

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.