CADA PESSOA QUE INSULTAVA UM GILET JAUNE INSULTAVA O MEU PAI | Edouard Louis | Tradução de Ana Cristina Pereira Leonardo

“Modesta tradução do corajoso texto de Edouard Louis publicado na revista Les Inrockuptibles, para aqueles que não sabem francês. E sim, ele sabe do que fala. Salvo pela escola pública, como o próprio disse, tem pelo menos um extraordinário livro traduzido em Portugal: «Para Acabar com Eddy Bellegueule».” (Ana Cristina Pereira Leonardo)

Há já alguns dias que tento escrever um texto sobre e para os gilets jeunes, mas não consigo. Porque, de certo modo, me sinto pessoalmente visado, algo na extrema violência e no desprezo de classe que se abatem sobre esse movimento me paralisa.
Tenho dificuldade em descrever a sensação de choque quando vi aparecerem as primeiras imagens dos gilets jeunes. Nas fotografias que acompanhavam os artigos via corpos que raramente aparecem no espaço público e mediático, corpos em sofrimento, arruinados pelo trabalho, pelo cansaço, pela fome, pela humilhação permanente dos dominadores em relação aos dominados, pela exclusão social e geográfica, via corpos cansados, mãos cansadas, costas alquebradas, olhares exaustos.

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Devaneios e veraneios | Ana Cristina Pereira Leonardo

anacristinaleonardo-cvConhecido pelos seus aforismos, o inclassificável Karl Kraus deixou obra literalmente de peso. Na última (publicada parcialmente em 1934 como resposta à vitória do nazismo na Alemanha), “A Terceira Noite de Walpurgis”, escreveu, deixando logo claro ao que vinha: “Sobre Hitler não me vem nada à cabeça”. Com uma escrita e pensamento cáusticos de primeira água, capazes de emparelhar com os maiores satíricos da história da literatura, Kraus continua hoje um recurso inesgotável para quem, podendo embora encarar o mundo como uma piada de Deus, não deixa de o encarar como uma piada de mau gosto.
Num dos números da revista “Die Fackel” (“A Tocha” ou “O Archote”, como se preferir), que manteve praticamente sozinho durante várias décadas, pode ler-se: “Posso provar que continua a ser uma terra de poetas e pensadores. Possuo um rolo de papel higiénico publicado por um editor, e cada folha contém uma citação de um clássico apropriada à situação”. Se Kraus se referia aqui aos clássicos da grande cultura alemã, que dizer desta citação que roubo a Passos Coelho, proferida recentemente no Pontal: “Nós levamos a sério a política.

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(…) não estive à altura da Revolução | Ana Cristina Pereira Leonardo

anacristinaleonardo-cvEu estou aqui a compor umas coisas para a B Hierro Lopes e dei comigo a rir de mim própria pela segunda vez…

De como fui confundida com uma puta no 28 de Setembro.

Como toda a gente sabe, houve o 5 de Outubro, o 28 de Maio, o 25 de Abril, o 28 de Setembro, o 11 de Março e o 25 de Novembro. Nas duas primeiras datas ainda não era nascida e tudo o que sei foi de ouvir dizer. O 25 de Abril já está ultra-batido… quanto às duas últimas, despindo a coisa de atavios, foi mais ou menos assim: no 11 de Março, os cabrões do PCP não tomaram o poder por pouco; no 25 de Novembro, os cabrões dos reaças tomaram o poder e pronto. As eventuais divergências quanto a este apanhado histórico agora não interessam nada porque vou contar uma história. A história passa-se a 28 de Setembro (dia em que a maioria silenciosa perdeu o pio..) e é uma história verídica
O nosso quartel-general, que o tínhamos, ficava nas instalações da Faculdade de Ciências de Lisboa, ali à rua da Escola Politécnica, onde muitos anos depois se vieram a expor restos de dinossauros e cadáveres chineses completos. Era um bom quartel-general. Tinha música (na «sonora»), uma cantina – que apesar das baratas e dos ratos podia ser tardiamente assaltada –, e era muito central. A mim dava-me bastante jeito porque vinha de Cascais e saía no Cais-do-Sodré.

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Em defesa da literatura | Ana Cristina Pereira Leonardo

anacristinaleonardo-cvTema: as personagens. As personagens diferenciam-se das pessoas por serem ficcionais enquanto as pessoas são reais: Anna Karénina/ Tolstoi/, Macbeth/ Shakespeare, Quixote/ Cervantes, Madame Bovary/ Flaubert, Bartleby/ Melville, Sherlock Holmes/ Conan Doyle, Dâmaso Salcede/ Eça de Queirós, Quina/ Agustina Bessa-Luís, Palma Bravo/ Cardoso Pires, Rapaz/ Dinis Machado, Myra/ Maria Velho da Costa… e assim sucessivamente, como disse João César Monteiro que, sendo uma pessoa, ninguém poderá negar que seja uma personagem.
O que é, porém, mais real? Karénina ou Tolstoi? Shakespeare ou Macbeth? Holmes ou Doyle? Jorge Luis Borges, outro que tanto tem de pessoa como de personagem, escreveu uns versos maravilhosos (talvez os mais maravilhosos) sobre a condição humana: “Yo, que tantos hombres he sido, no he sido nunca / aquel en cuyo abrazo desfallecía Matilde Urbach”. Quem foi Matilde Urbach? E Borges, saberemos mesmo quem foi Borges? “Na realidade não tenho a certeza que exista. Sou todos os autores que li, toda a gente que conheci, todas as mulheres que amei, todas as cidades que visitei, todos os meus antepassados”, disse de si próprio o argentino.
Se o mundo, e não só o paraíso, for uma biblioteca a tender para o infinito, o que nos distinguirá de Medeia, Pierre Ménard ou Holden Caulfield? Alguém que tenha sido formado a ler livros tenderá a dizer que muito pouco (e a tentação de olhar, por exemplo, para os políticos da UE como personagens, no caso terciárias, torna-se tentadora, senão inevitável).
Avaliar as pessoas de acordo com a sua densidade enquanto personagens leva-nos a estabelecer hierarquias assentes em outros critérios que não os da mera simpatia: o que é, por exemplo, um Dijsselbloem tecnocrata ao lado de um Erdoğan ditador? Quem imagina um romance dedicado a Passos Coelho? A Maria de Belém? Uma novela sobre Cavaco Silva? Assunção Cristas ao lado de Catherine Earnshaw?! Isilda Pegado ao lado de D. Patrocínio das Neves?! Ou vice-versa: Felicidade de Noronha ao lado de Zita Seabra?! O tédio!
Não se trata, ter-se-á percebido, de simples escolhas políticas. Octogenário, Norman Mailer ficcionou os primeiros anos de Hitler no romance “The Castle in the Forest”. Foi criticado: “One can’t forbid artists from dealing with Hitler but art will never achieve an understanding of the phenomenon”. Mas se não chegarmos lá pela arte, como sobreviver ao fenómeno da realidade?

Retirado do Facebook | Mural de Ana Cristina Pereira Leonardo