Germano Almeida: “Não me peçam desculpa pelos meus antepassados, tratem-me a mim como gente” | por Joana Emídio Marques in Jornal “Observador”

Germano de Almeida, 73 anos, escritor cabo-verdiano, recebeu este ano o prémio Camões. É publicado em Portugal há 30 anos mas os seus livros vendem pouco mais de 100 exemplares. Este ano o prémio Camões veio dizer que há África para lá de Agualusa e Mia Couto.

Chama a si mesmo “contador de histórias”, herdeiro daqueles homens que nas noites infinitas da ilha da Boavista, Cabo Verde, sem luz elétrica, sem televisão, sem telefones, sem Internet, se sentavam à porta das casas para contar histórias. Eram noites de lua cheia, as crianças pagavam-lhes em cigarros e eles tiravam da memória essas histórias onde se fundia a ancestralidade de Europa e África, de colonos e escravos, de romances de cavalaria e mitos, de gente que na sua passagem pelas Ilhas deixava para trás peripécias, tragicomédias ou tragédias, morte e vida. Mas sobretudo onde o crioulo e o português se misturavam para que todos, contador e ouvintes, se transmudassem em heróis de mundos por achar. É este tempo mágico onde a palavra tinha a força da magia e da honra que Germano Almeida, prémio Camões 2018, reclama para si.

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Joana Emídio Marques | As selfies são menos uma expressão da nossa vaidade do que do nosso desespero

joanaComo bem sabiam os mitos nunca resistimos ao fascínio de ver a nossa própria imagem duplicada. As novas tecnologias, actuando como sempre, no âmago dos nossos fantasmas e dos nossos medos, deram-nos o instrumento perfeito: o lago portátil, o espelho que se pode colocar no meio da praça publica. As selfies são menos uma expressão da nossa vaidade do que do nosso desespero. Como se, predados pela morte omnipresente, quiséssemos resgatar qualquer coisa da passagem do nosso corpo pelo mundo antes da dissolução, do esquecimento que seremos.

Retirado do Facebook | Mural de Joana Emídio Marques

Poesia by Joana Emídio Marques

De repente tudo era feito de silêncio.
A fome, as multidões, os acidentes, as chegadas e as partidas.
Quantas ausências há numa multidão?
Quantas mortes no bulicio das tardes idênticas?
Quanto silêncio há naquilo que é feito de Nós?
No acontecer ignorado das coisas ínfimas.
Soltou-se um fio de cabelo, levantei e desci os olhos em frente de tudo o que Não
O teu rosto é belo e eu digo:não sei a palavra.
Em ti a seda é a sabedoria dos bichos acuados.
A carne viva não contém um único sobressalto.
E sim. Eu grito. Eu grito para que nada se mova fora do meu existir.
Eu grito para interromper esse silêncio letal dos instantes que parecem Nós.
Para não adormecer no labirinto milenar que se levanta como um Começo.
De repente tudo era interior Nosso.
A casa, o corpo, as palavras que os vêem antes dos olhos e lhes roubarem o mistério e a graça.
Antes ( ou depois?) o ruído.
Frases acumuladas. Metal entrechocando. Motores, travagens.
Quantas multidões há numa ausência?
Quantas tardes idênticas no bulicio das mortes?
Quanto de Nós há naquilo que é feito de silêncio?
Nas coisas infimas de acontecer ignorado?
Há fios de cabelo por todo o lado,
cheiro a herança e cigarros.
E paredes que o comem lentamente.
Abro a janela como se houvesse passagem
Levanto e baixo os olhos ao compasso do que atravesso
Não danço, não grito.
Movo-me junto à quietude de uma memória sem Nós
e esforço-me para pensar um primeiro pensamento
que a empurre para longe.