Manhãs | Maria Isabel Fidalgo

Eram manhãs e manhãs
de corpo à solta
no amplo areal da juventude.
O sol gozava de aquecer
e decaía alaranjado ao pôr do dia
como quem diz adeus ao trabalho
e recolhe a casa para repousar.
Eram manhãs e manhãs de fogo
toda uma fogueira em cada dedo
com laranjas redondas despontando
nos pomares bicados de pássaros.


Eram noites e noites
luas cheias de ardores
e um love me tender
morno e mole
na campânula do poço.
Eram dias buliçosos
na clareira dos sonhos
choros, ânsias, desesperos
umas janelas mais que verdes
sempre dispostas a trinar
em nuvens coloridas de quimera
e hoje, um corpo a esmaecer,
já sem espera
na casa que resta
à beira-ver.

Maria Isabel Fidalgo

Também já fui a cigana (ou a preta) dos outros | Ana Sousa Dias in Diário de Notícias

E lá consegue fazer isto, é espantoso. Esta era a reação do patrão que me tinha atribuído uma tarefa ridiculamente fácil, mas como eu era portuguesa ele não esperava que eu conseguisse. Estávamos em Bruxelas em 1973, talvez início de 1974, e naquela pequena empresa os únicos belgas eram o dono e a secretária. Nós, os outros, éramos uma espécie de equipa benetton: uma congolesa, uma espanhola, um vietnamita, uma polaca e eu. Recebíamos menos e tínhamos menos direitos do que os da Comunidade Económica Europeia, na altura constituída por França, República Federal da Alemanha, Itália, Holanda, Bélgica e Luxemburgo. E mais o Reino Unido, a Irlanda e a Dinamarca, que tinham acabado de entrar.

Nós éramos todos de fora e isso criou cumplicidades com significados diferentes. Anne-Marie, linda e sempre vestida de capulanas espetaculares, era casada com um opositor de Mobutu, um homem de Lumumba que tinha sido forçado a deixar o então chamado Zaire. Tínhamos uma cumplicidade política, uma coisa em meias-palavras. Blanca era exuberante e atrevida. Aproveitava as ausências do chefe e da secretária para falar ao telefone com o namorado em Espanha. Ríamo-nos, só eu percebia o que ela dizia. Barbara encantava-se com os sons do português e de vez em quando ia a minha casa. Gostava da palavra nuvem. O contabilista Trinh era discreto, não convivia connosco.

O patrão, bigodinho estreito e sotaque de Bruxelas, e a secretária eram os únicos monsieur e madame. Nós éramos Anne-Marie, Blanca, Barbara, Trinh e Ana.

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