Nietzsche e o cristianismo | in Revista Cult

Interessa ao filósofo não a verdade histórica, ou seja, o texto da verdadeira pregação do Cristo, mas a reconstituição de seu tipo psicológico.

Que possibilidades restam hoje para um diálogo entre Nietzsche e o Cristianismo? Tomemos a frase de O anticristo que, de imediato, nos lança no campo filológico das relações entre texto e interpretação: “Eu volto atrás. Conto a autêntica história do Cristianismo (des Chirstenthums). Já a palavra ‘Cristianismo’ (Christenthum) é um mal entendido – no fundo houve um único cristão, e este morreu na cruz. O ‘Evangelho’ morreu na cruz.”1.

O Cristianismo (Christenthum) é um mal entendido porque resulta de uma falsa interpretação do Evangelho, da vida de Jesus de Nazaré. “O ‘Evangelho’ morreu na cruz” – isso significa que o mal entendido consiste na fé cristã, tal como esta se apresenta no Cristianismo histórico. Desvirtua-se a Boa Nova de Jesus, considerando-a sob a óptica teológica do pecado, da culpa e do castigo; tomando-o como vítima expiatória de um sacrifício vicário.

Nietzsche estabelece uma oposição entre Christenthum (Cristianismo) e Christlichkeit e Christ-sein (respectivamente Cristianicidade e ser-cristão). O Cristianismo ‘oficial’ consiste na redução do Ser-cristão, da espiritualidade própria à Cristianicidade, a dogmas, fundamento da crença eclesiástica.

“Reduzir o Ser-cristão, a Cristianicidade a um ter-por-verdadeiro, a uma mera fenomenalidade da consciência, significa negar a Cristianidade. De fato não houve em absoluto cristãos. O ‘cristão’, aquilo que há dois milênios se chama cristão, é meramente um mal entendido psicológico.!”2?

Continuar a ler

Voltar aos Evangelhos, dia após dia | Frederico Lourenço

Levado pela curiosidade e ajudado pela propensão poliglota com que tive a sorte de nascer, em 57 anos de vida já li muitos textos em várias línguas. Mas os quatro textos a que volto sempre são os Evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João, que leio todos os dias em grego e também nas luminosas traduções latinas conhecidas como «Vetus Latina» e «Vulgata» (no caso dos Evangelhos, «Vulgata» designa no fundo a «Vetus Latina» retocada por Jerónimo).

Por estranho que pareça, o facto de eu ter publicado uma tradução dos Evangelhos e de eles fazerem parte do meu quotidiano não trouxe o efeito que eu previa de familiaridade, muito menos o que eu receava de banalidade. Estes textos, que conheço de trás para a frente, nunca me são familiares, porque são todos os dias uma descoberta fulminante; e, em vez de o meu estudo operar um efeito de banalização, o que acontece é que estes textos se me tornam cada vez mais especiais, mais únicos – e, ao mesmo tempo, mais enigmáticos, mais ambíguos, mais difíceis de entender.

Continuar a ler