É urgente o Amor | Eugénio de Andrade | Nascimento 19 de janeiro de 1923

Nasceu há 100 anos, na Póvoa de Atalaia, Fundão, mas radicou-se no Porto onde viveu quase toda a sua vida.

Identificou-se profundamente com a cidade, mas nunca renegou a sua ligação íntima com o mundo rural onde foi criado. Era – É – o poeta do corpo, da terra, do amor.

Apesar de nos ter deixado fisicamente em 2005, mantém, por isso, uma presença indelével.

Obrigado Eugénio de Andrade.

“É urgente o Amor,

É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras

ódio, solidão e crueldade,

alguns lamentos,

muitas espadas.

É urgente inventar alegria,

multiplicar os beijos, as searas,

é urgente descobrir rosas e rios

e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros,

e a luz impura até doer.

É urgente o amor,

É urgente permanecer.”

Reirado do Facebook | Mural de Manuel Pizarro

Elegia das Águas Negras para Che Guevara | por Eugénio de Andrade

Atado ao silêncio, o coração ainda

pesado de amor, jazes de perfil,

escutando, por assim dizer, as águas

negras da nossa aflição.

Pálidas vozes procuram-te na bruma;

de prado em prado procuram

um potro mais libre, a palmeira mais alta

sobre o lago, um barco talvez

ou o mel entornado da nossa alegria.

Olhos apertados pelo medo

aguardam na noite o sol do meio-dia,

a face viva do sol onde cresces,

onde te confundes com os ramos

de sangue do verão ou o rumor

dos pés brancos da chuva nas areias.

A palavra, como tu dizias, chega

húmida dos bosques: temos que semeá-la;

chega húmida da terra: temos que defendê-la;

chega com as andorinhas

que a beberam sílaba a sílaba na tua boca.

Cada palavra tua é um homem de pé,

cada palavra tua faz do orvalho uma faca,

faz do ódio um vinho inocente

para bebermos, contigo

no coração, em redor do fogo.

“Os olhos rasos de água” | Eugénio de Andrade

Cansado de ser homem durante o dia inteiro

chego à noite com os olhos rasos de água.

Posso então deitar-me ao pé do teu retrato,

entrar dentro de ti como num bosque.

É a hora de fazer milagres:

posso ressuscitar os mortos e trazê-los  

a este quarto branco e despovoado,

onde entro sempre pela primeira vez,

para falarmos das grandes searas de trigo

afogadas a luz do amanhecer.

Posso prometer uma viagem ao paraíso

a quem se estender ao pé de mim,

ou deixar uma lágrima nos meus olhos

ser toda a nostalgia das areias.

Eugénio de Andrade, in “As palavras interditas”

“Poema à Mãe”, Eugénio de Andrade, dito por Manuel Capitão

No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe.

Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos.

Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!

Olha – queres ouvir-me? –
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;

ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;

ainda ouço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
No meio de um laranjal…

Mas – tu sabes – a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber.

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.

É URGENTE O AMOR | Eugénio de Andrade

É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.

É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.

O sorriso | Le sourire | Eugénio de Andrade

 

 

 

 

Creio que foi o sorriso,
0 sorriso foi quem abriu aporta.
Era um sorriso com
muita luz
lá dentro, apetecia entrar nele,
tirar a roupa,
ficar
nu dentro daquele
sorriso.

Correr, navegar, morrer
naquele sorriso.

Eugénio de Andrade


Le sourire

Je crois que ce fut le sourire,
le sourire, lui, qui ouvrit la porte.
C’était un sourire avec
beaucoup de lumière
à l’intérieur, il me plaisait
d’y entrer,
de me dévêtir,
de rester
nu
à l’intérieur de ce sourire.

Courir, naviguer, mourir
dans ce sourire.

Eugénio de Andrade

As Mães | Eugénio de Andrade

mulher com cântaro - de álvaro cunhalQuando voltar ao Alentejo as cigarras já terão morrido. Passaram o verão todo a transformar a luz em canto – não sei de destino mais glorioso. Quem lá encontraremos, pela certa, são aquelas mulheres envolvidas na sombra dos seus lutos, como se a terra lhes tivesse morrido e para todo o sempre se quedassem órfãs. Não as veremos apenas em Barrancos ou em Castro Laboreiro, elas estão em toda a parte onde nasça o sol: em Cória ou Catania, em Mistras ou Santa Clara del Cobre, em Varchats ou Beni Mellal, porque elas são as Mães. O olhar esperto ou sonolento, o corpo feito um espeto ou mal podendo com as carnes, elas são as Mães. A tua; a minha, se não tivera morrido tão cedo, sem tempo para que o rosto viesse a ser lavrado pelo vento. Provavelmente estão aí desde a primeira estrela.

E como duram! Feitas de urze ressequida, parecem imortais. Se o não forem, são pelo menos incorruptíveis, como se participassem da natureza do fogo. Com mãos friáveis teceram a rede dos nossos sonhos, alimentaram-nos com a luz coada pela obscuridade dos seus lenços. Às vezes encostam-se à cal dos muros a ver passar os dias, roendo uma côdea ou fazendo uns carapins para o último dos netos, as entranhas abertas nas palavras que vão trocando entre si; outras vezes caminham por quelhas e quelhas de pedra solta, batem a um postigo, pedem lume, umas pedrinhas de sal, agradecem pela alma de quem lá têm, voltam ao calor animal da casa, aquecem um migalho de café, regam as sardinheiras, depois de varrerem o terreiro. Elas são as Mães, essas mulheres que Goethe pensa estarem fora do tempo e do espaço, anteriores ao Céu e ao Inferno, assim velhas, assim terrosas, os olhos perdidos e vazios, ou vivos como brasas assopradas.

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As Palavras Interditas | Eugénio de Andrade

eugenio de andrade

Os navios existem, e existe o teu rosto
encostado ao rosto dos navios.
Sem nenhum destino flutuam nas cidades,
partem no vento, regressam nos rios.

Na areia branca, onde o tempo começa,
uma criança passa de costas para o mar.
Anoitece. Não há dúvida, anoitece.
É preciso partir, é preciso ficar.

 

Os hospitais cobrem-se de cinza.
Ondas de sombra quebram nas esquinas.
Amo-te… E entram pela janela
as primeiras luzes das colinas.

As palavras que te envio são interditas
até, meu amor, pelo halo das searas;
se alguma regressasse, nem já reconhecia
o teu nome nas suas curvas claras.

Dói-me esta água, este ar que se respira,
dói-me esta solidão de pedra escura,
estas mãos nocturnas onde aperto
os meus dias quebrados na cintura.

E a noite cresce apaixonadamente.
Nas suas margens nuas, desoladas,
cada homem tem apenas para dar
um horizonte de cidades bombardeadas.

Eugénio de Andrade, in “Poesia e Prosa”

Novas edições de Eugénio de Andrade

Eugenio

Limiar dos Pássaros e Memória Doutro Rio são as duas novidades da Assírio & Alvim Dois livros de Eugénio de Andrade regressam às livrarias, no dia 17 de outubro: Limiar dos Pássaros e Memória Doutro Rio, com prefácios de Pedro Eiras e Fernando Guimarães, respetivamente.

Limiar dos Pássaros foi publicado, pela primeira vez, em 1976, e divide-se em três partes: «Limiar dos Pássaros», «Verão sobre o Corpo» — um conjunto de textos em prosa — e «Rente à Fala». Estas partes estruturam o livro e estabelecem entre si uma continuidade que permite associálas musicalmente a três andamentos de uma mesma obra.

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Poema de Eugénio de Andrade

Entre os teus lábios
é que a loucura acode
desce à garganta,
invade a água.

No teu peito
é que o pólen do fogo
se junta à nascente,
alastra na sombra.

Nos teus flancos
é que a fonte começa
a ser rio de abelhas,
rumor de tigre.

Da cintura aos joelhos
é que a areia queima,
o sol é secreto, cego o silêncio.

Deita-te comigo.
Ilumina meus vidros.
Entre lábios e lábios
toda a música é minha.

Eugénio de Andrade

seios

Poema à mãe | Eugénio de Andrade

No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe.

Tudo porque já não sou
o menino adormecido
no fundo dos teus olhos.

Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.

tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!

Olha – queres ouvir-me? –
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;
ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;

ainda oiço a tua voz:

Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal…

Mas – tu sabes – a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber.

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.

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