Devia morrer-se de outra maneira | José Gomes Ferreira

Devia morrer-se de outra maneira.

Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.

Ou em nuvens.

Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol

a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos

os amigos mais íntimos com um cartão de convite

para o ritual do Grande Desfazer: “Fulano de tal comunica

a V. Exa. que vai transformar-se em nuvem hoje

às 9 horas. Traje de passeio”.

E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos

escuros, olhos de lua de cerimônia, viríamos todos assistir

a despedida.

Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio.

“Adeus! Adeus!”

E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,

numa lassidão de arrancar raízes…

(primeiro, os olhos… em seguida, os lábios… depois os cabelos… )

a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se

em fumo… tão leve… tão sutil… tão pólen…

como aquela nuvem além (veem?) — nesta tarde de outono

ainda tocada por um vento de lábios azuis…

José Gomes Ferreira

Retirado do Facebook | Mural de Maria Cantinho

1º de Maio | José Gomes Ferreira | Poema

(Junto a minha voz ao coro dos poetas mais novos.
Recuso-me a ter mais de vinte anos.)

Poema | José Gomes Ferreira

Vem hoje um cheiro tão bom lá de fora do mundo!
Um cheiro a esponsais de primavera
com deusas de astros na fronte
e enlaces de folhas de hera
no cabelo voado…

(Ah! se eu encontrasse a ponte
que vai para o outro lado!)

José Gomes Ferreira

in Antologia Poética, Porto Editora, 197

 

Retirado do Facebook | Mural de Vítor Quelhas

Dias Comuns VII – Rasto Cinzento, de José Gomes Ferreira

Dias Comuns VII - Rasto CizentoO diário Dias Comuns, de José Gomes Ferreira, começou a ser publicado em 1990, cinco anos após a sua morte.

Este sétimo volume, Rasto Cinzento, debruça-se no período entre 1 de Janeiro e 17 de Agosto de 1969. Aqui se revela muitíssimo da vida do autor, da sua obra e pensamentos mais íntimos, mas também histórias e momentos do panorama literário e político português de finais da década de 60. Naturalmente são referidas figuras e nomes dos meios político e culturais da época, como por exemplo: Amália Rodrigues; Alexandre Pinheiro Torres; Ary dos Santos; Augusto Abelaira; Carlos de Oliveira; Fernando Lopes Graça; Fernando Namora; José Cardoso Pires; Maria Teresa Horta; Mario Cesariny, Mário Dionísio; Mário Soares; Miguel Torga; Natália Correia; Nikias Skapinakis; Óscar Lopes; Sophia; Urbano Tavares Rodrigues, entre outros.