NA MORTE DE GORBACHEV (1931-2022) | por Carlos Fino

No momento em que é anunciada a morte de Mikhail Gorbachev recordo naturalmente com emoção as imagens e vivências desses dias longínquos de novembro de 1987, em que integrei como tradutor a delegação portuguesa, durante visita oficial à URSS do então Presidente Mário Soares.

Ao entrarmos na sumptuosa sala de São Jorge, no Grande Palácio do Kremlin, toda coberta de seda debruada a ouro tendo apensas as mais imponentes condecorações por coragem e heroísmo militares do tempo de Catarina, a sensação que tive e conservo até hoje foi a de estar num museu de cera, de hieráticas figuras envelhecidas em que de repente havia uma que ganhava vida e falava – Gorbachev.

Havia nele uma mistura de seriedade aparatchik e visão aggionarta que o impulsionavam para a mudança, então ainda sem suspeitar que um dia tudo iria escapar do seu controlo.

Com a simpatia e fina intuição política que o caracterizavam, Soares (que ficou alojado no Kremlin, deferência rara) captou a novidade e aproveitou bem o momento, travando com Gorbachev um diálogo animado e franco, em que Angola foi um dos pontos em destaque.

De passagem, soube também lisonjear o interlocutor com uma deslocação ao túmulo do Soldado Desconhecido, junto à muralha do Kremlin, onde prestou homenagem “ao esforço decisivo da URSS para a vitória sobre o nazismo na segunda guerra mundial”.

Apesar de toda agitação social que a Perestroika desencadeou no país, do caos político e dos conflitos armados que acabaram por eclodir em diferentes regiões da ex-URSS, Gorbachev e a direção política a que presidiu conseguiram sempre manter sob controlo o armamento nuclear.

Acreditou porventura demais nas promessas de não expansão da NATO para leste que então lhe foram feitas, acabando por ver desfazer-se o sonho de uma Europa do Atlântico aos Urais – “Nossa Casa Comum”. Mas o mérito do derrube do muro de Berlim, pondo fim à Guerra Fria, é todo seu, ao ter impedido Honecker de reprimir as manifestações populares na Alemanha de Leste.

Gorbachev não é hoje popular na Rússia – apontam-lhe a responsabilidade de ter aberto as portas ao fim do império, como se esse declínio não viesse já de muito antes e ele afinal mais não tivesse tentado do que evitá-lo pela mudança quando era já evidente onde estava conduzindo a estagnação.

Com o seu desaparecimento parece agora morrer também a era de esperança e diálogo a que deu início, com a Europa a mergulhar de novo no confronto, na intolerância e na guerra. Fechou-se a janela de oportunidade aberta por Gorbachev de estabelecer com a Rússia um modus vivendi mutuamente vantajoso com uma perspectiva democrática no horizonte.

Resta desejar que descanse em paz e que a sua ideia de uma Rússia reconciliada com o Ocidente e vice versa ainda possa um dia renascer

CF | Foto: Luís Vasconcelos