Deus e Tolentino | Feliz Natal | Luís Osório

  1. O Cardeal Tolentino de Mendonça, reclinado perante o Papa Francisco, perguntou-lhe: “Santo Padre, o que me fez”. Naquele momento em que o Papa, na Basílica de São Pedro, cumprimentava cada um dos 13 novos cardeais, o bibliotecário do Vaticano sentiu o tempo parar. Francisco respondeu que ele era a poesia. E seguiu. Já passaram dois anos, o tempo infelizmente não trava como nos momentos de grande jubilo interior, continua sempre.

2. O Cardeal Tolentino de Mendonça, o rapaz pobre de Machico, filho de um pescador, continua e escrever poemas. E a ser um habitante do silêncio… apesar de toda a balbúrdia, de todo o chinfrim do mundo, ele continua a ser a criança que atravessa o mundo.

Conhecem o meu poema preferido entre todos os que escreveu?

“Travessia da infância

Quietos fazemos as grandes viagens

só a alma convive com as paragens

estranhas

lembro-me de uma janela

na Travessa da Infância

onde seguindo o rumor dos autocarros

olhei pela primeira vez o mundo

não sei se poderás adivinhara secreta glória que senti

por esses dias

só mais tarde descobri que

o último apeadeiro de todos

os autocarros

era ainda antes do mundo

mas isso foi depois

muito depois

repito”

3. Tolentino já tem a sua igreja em Roma. Era bom que as coisas fossem assim tão fáceis. Feitas de regras humanas, de procedimentos, vamos para aqui porque está destinado por isto ou por aquilo. Mas não é, a viagem é outra. Entramos e não sabemos para onde o autocarro nos leva. O filho do pescador, que um dia se poderá tornar um pescador de homens, está em plena viagem. Como nós. Como tu. E eu. Estamos no comboio sem saber o destino ou as estações onde ele nos pode deixar ou abandonar.

4. E Deus, Tolentino?Como o ver se somos cegos? Como o ouvir se somos surdos? Como lhe tocar se os nossos dedos continuam sem sensibilidade?

E o Natal, Tolentino? O que é este barulho que para aqui vai?

Escrevo-te daqui para aí. Espero que te chegue, à tua igreja talvez, em Roma, num largo movimentado de jovens cobertos de sonhos. Um dia escrevi um texto sobre Deus, pensei em ti quando o coloquei por palavras.

“O meu Deus não tem voz grossa, tem a que imagino. O meu Deus não me castiga, oferece-me liberdade. O Meu Deus não me chantageia, acredita na responsabilidade. O meu Deus não me corta o desejo, recomenda-me uma canção. O meu Deus dança comigo quando danço sem par. O meu Deus tem humor, escuto-o e sei do que falo. O meu Deus está aqui, se me virar rápido ainda o vejo. O meu Deus é um pressentimento, uma promessa, é o bem e o mal, sou eu nos piores dias. É esperança e virtude. O meu Deus acredita em mim.” (Em Amor, Oficina do Livro, 2016)

É isto, Tolentino. Tu és a poesia.

Um Santo Natal

LO

Retirado do Facebook | Mural de Luís Osório

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