RAZÃO VERSUS FÉ, UMA DIALÉCTICA DA IDADE MÉDIA (1) | António Galopim de Carvalho

Situada entre aproximadamente os séculos V e XV, a IDADE MÉDIA foi um tempo de alastramento do cristianismo e da vida cultural na Europa ocidental, sobretudo através do surgimento de mosteiros da Ordem dos Beneditinos. Seguidores de São Bento de Núrcia (480-547), os monges desta comunidade cristã, iniciadores do movimento monacal, foram os herdeiros da cultura latina e os depositários do essencial do saber do mundo antigo. Estão entre eles os criadores do enciclopedismo, com destaque para Santo Isidoro de Sevilha (570-636) que nos deixou “Etymologiae sive origines”, publicado oito séculos depois, em 1483. Durante este período, o estudo e o ensino transitaram dos mosteiros e conventos para as chamadas escolas catedrais, criadas por toda a Europa, estas que, por seu turno, foram os embriões das universidades nos centros urbanos mais importantes (Salermo, Bolonha, Paris, Oxford, Montpelier, Arezzo, Salamanca, Pádua, Orleães, Roma, Siena, Lisboa, entre muitas outras), privilegiando o ensino de disciplinas como teologia, gramática, retórica, dialéctica (lógica), aritmética, geometria, astronomia, direito, medicina e música.

Com a queda do Império Romano do Ocidente, em 476, parte importante do conhecimento produzido e ensinado na ANTIGUIDADE sobreviveu graças às traduções que eruditos árabes e judeus fizeram das obras clássicas. Tal permitiu que a alquimia dos chineses, babilónios e egípcios e a filosofia dos gregos reaparecessem na Europa medieval. Foi o tempo da ESCOLÁSTICA (do grego “scolastikós”, que quer dizer instruído), o método de pensamento dominante no ensino nas universidades medievais europeias. Entendida como uma via de harmonização da fé com a razão, a escolástica procurou conduzir o racionalismo e o empirismo filosófico de Aristóteles no interesse da teologia ou, numa outra versão, conciliar o pensamento deste Filósofo com a doutrina da Igreja. As obras então publicadas nos campos da filosofia e da teologia revelam a redescoberta das ideias deste que foi o criador do Liceu de Atenas, como correntes do pensamento que conduziram à introdução da LÓGICA no discurso, constituindo uma via interessada em abordar, de forma sistémica, a razão e a verdade da Fé.

Na evolução do pensamento científico é necessário recordar o grande filósofo de origem árabe, Abu al-Walid Ibn Munhammad Ibn Ruchd (1126-1198), mais conhecido por Averróis (distorção latina do seu cognome árabe). Nascido em Córdova, na vizinha Espanha, então território muçulmano, é tido como o mais afamado filósofo islâmico da Idade Média, viveu muito à frente do seu tempo, abrindo o caminho para o RENASCIMENTO e influenciando, significativamente, a filosofia europeia. Intelectual de grande eclectismo, Averróis foi médico, astrónomo, jurista e teólogo. Estudioso do direito canónico muçulmano, foi um dos maiores conhecedores e comentadores do pensamento de Aristóteles, tendo ficado conhecido na história da filosofia pelo cognome de “O Comentador”. Ao afirmar:

“Com excepção do sobrenatural, o pensamento se deve sujeitar à força da razão”,

este muçulmano ibérico, contemporâneo do nosso rei Afonso Henriques, teve grande e decisiva influência na evolução da ciência, em geral. Seguidor do aristotelismo, na tradição árabe de recuperação da filosofia grega, Averróis soube fundi-lo com uma parcela de platonismo. Assim, afirmava:

“a par da verdade óbvia do dia-a-dia, observável e aceite pelo povo, e da verdade mística da Fé, defendida e propalada pelos teólogos, há a verdade científica, fruto da razão, podendo estar em desacordo umas com as outras”.

Num tempo em que a teologia dominava sobre a filosofia natural (ciências naturais), as suas ideias alastraram entre a comunidade de estudiosos cristãos da Universidade de Paris,

criando uma corrente de pensamento científico puro e independente das crenças religiosas, oposto à envelhecida tese de Santo Agostinho (354-430), segundo a qual havia uma única verdade, a dos santos Evangelhos.

Para Averróis, uma dada afirmação pode ser filosoficamente (cientificamente) verdadeira e teologicamente falsa e vice-versa. Embora não tenha abordado temas directamente relacionados com as ciências da Terra, a intensa defesa que fez do pensamento científico e da sua independência relativamente aos dogmas da Igreja, Averróis deu sustentáculo ao avanço, tantas vezes difícil, levado a cabo, primeiro, por naturalistas e, mais tarde, por geólogos.

A Andaluzia era, então, um dos mais notáveis centros de sabedoria da humanidade. Muitos dos textos dos filósofos gregos salvos das bibliotecas de então foram aqui traduzidos, dando lugar a um

movimento intelectual notável que acabou por ser aniquilado pela reconquista cristã.

Uma tal hegemonia intelectual determinou que, durante os últimos quatro séculos da Idade Média, o árabe foi a língua dominante na ciência, ainda embrionária, no espaço europeu. Durante parte da sua vida, Averróis contou com a protecção dos califas locais, até que foi desterrado por Abu Yusuf Ya’qub al-Mansur que, na mesma linha das hierarquias do catolicismo, considerou as suas opiniões desrespeitadoras e em desacordo com o Corão. Muito da sua obra acabou também por ser condenada pela Igreja Católica. Tomás de Aquino (1225-1274), que foi um seguidor de Aristóteles e de Averróis, opôs-se, no entanto, ao naturalismo exclusivamente racional deste filósofo muçulmano.

Nota: Criador do Liceu de Atenas, Aristóteles era conhecido por “o estagirita”, uma vez que era natural de Estagira, antiga cidade da Macedónia, hoje situada na Grécia.

Na imagem: pormenor da estátua de  Averróis em Córdova, Espanha.

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